Arquivo de maio, 2015

Posted by: Walter Alfredo Voigt Bach , março 13, 2015

Completamente sem Dignidade: entrevista com Karl Ove Knausgard

Den norske forfatter Karl Ove Knausgård er aktuel med romanen "Min kamp" på dansk.

Den norske forfatter Karl Ove Knausgård er aktuel med romanen “Min kamp” på dansk.

Karl Ove Knausgard fala sobre o processo de escrita de suas obras autobiográficas

Karl Ove Knausgard. Se o nome do norueguês não significar muito, talvez sua obra diga algo. Seus livros autobiográficos estouraram comercialmente em seu país natal, e não tardou para o mundo ler sua produção e se perguntar o que há de tão especial nela. Os seis volumes da série Minha Luta, dos quais os dois primeiros já foram lançados aqui no Brasil – Minha Luta e Um outro Amor, em 2013 e 2014, respectivamente – totalizam 3500 páginas.

Além do tamanho, a forma como Knausgard tratou de temas da própria vida e da sociedade causou polêmica na Noruega. A Paris Review publicou uma entrevista com o autor em dezembro de 2013, e o Homo Literatus traduziu alguns trechos dela. Com a palavra, Karl Ove Knausgard, o homem sem dignidade.

***

Você escreveu em diários quando mais novo?

Escrevi, sim, mas queimei-os todos aos vinte e cinco ou vinte e seis anos.

Por quê?

Estava com vergonha, não dava para aguentar. A mesma coisa acontece com os Minha luta, eu não aguento. Se pudesse, queimaria toda a série, também, mas as impressões são muitas, então é impossível.

A vida se desenvolve, muda, segue em frente. Já as formas de literatura não. Então, se quer que a escrita se aproxime da vida — e não digo isso como uma desculpa para o realismo — mas, se quer escrever de forma próxima à vida, é preciso quebrar as formas antigas, o que significa que você sempre terá a sensação de estar escrevendo o primeiro romance pela primeira vez, o que significa que você não sabe escrever. Todos os bons escritores têm isso em comum, eles não sabem escrever.

Mas queimar um romance é diferente de queimar um diário, não é? Queimar um diário é repudiar uma forma anterior de si mesmo.

Uma coisa é ser banal e estúpido em seu interior. Outra coisa é capturar tudo isso na escrita. Quando comecei a escrever de forma mais sistemática, não consegui aguentar aquele maldito escritor de diários dentro de mim, eu precisava me livrar dele. E me livrei, sozinho em meu apartamento estudantil, página por página.

Mas qualquer pessoa com o menor conhecimento de literatura e escrita — talvez de arte em geral — sabe que reprimir o que nos traz vergonha jamais leva a nada de valor. Isso é algo que descobri mais tarde, ao escrever meu primeiro romance, quando as partes das quais eu mais me envergonhava por ter escrito eram as mesmas que meu editor apontava e dizia: “Isso é muito bom!” De certa forma, foi meu termômetro de vergonha, a crença de que o sentimento de vergonha ou de culpa significava relevância, que finalmente me levou a escrever sobre mim mesmo, o ato mais vergonhoso de todos, em uma tentativa de atingir a inocência do escritor de diários então queimado.

A Escandinávia não tem como tradição a escrita de memórias, mas tem escritores de diários. Olav H. Hauge, o poeta norueguês, escreveu um diário de três mil páginas que foi publicado após sua morte, quando você tinha cerca de vinte e seis anos. Você teve uma reação forte a isso?

Sim, tive. Eu o li com muita intensidade em um período curto de tempo, durante uma espécie de crise em minha vida. Foi uma obsessão. E era muito estranho, porque ele escreveu de 1916, ou algo assim, até 1990, então o diário cobre toda sua vida. E Hauge quase não saiu da fazenda. Nada acontece na vida dele. E ele escreve sobre nada, mesmo. Nada acontece, a não ser por seus pensamentos e a colheita das maçãs.

É uma espécie de escrita hipnótica, o que deveria ser algo chato. Quer dizer, temos vários exemplos disso. Lars Norén, o dramaturgo sueco, publicou um diário recentemente, que eu li durante a escrita de Minha luta, e foi a mesma coisa. Cinquenta páginas sobre jardinagem, e deveria ter sido horrível, muito chato. Mas há algo mágico ali, algo de hipnótico, e foi a mesma coisa com Hauge. Ele se repete a todo momento. Não é bom se pensarmos em termos de redação, não é bom se pensarmos termos de narrativa, mas ainda é hipnótico. E acho que isso tem a ver com o sentimento de proximidade.

Pode falar sobre como você se lembra do passado quando está escrevendo?

Escrever é recordar. Nisso eu sou um proustiano clássico. Se você joga futebol pela primeira vez em vinte anos, por exemplo, ao realizar todos aqueles movimentos de novo, você acaba fazendo com que o corpo se lembre não apenas dos movimentos estranhamente familiares, mas também de tudo conectado a jogar futebol, e, por alguns segundos, todo um mundo é trazido de volta a você. De onde ele veio? Acredito que toda a nossa experiência é mantida dentro de nós, só precisamos de um pequeno lembrete para que alguma coisa seja liberada.

Quando comecei o romance, imaginei nossa casa, imaginei a mim mesmo andando até ela, estava nevando, estava escuro, dentro dela estavam meu pai e minha mãe, e eu me lembrei da sensação da neve, e do cheiro da neve, e dos sentimentos que eu tinha em relação ao meu pai naquela época, e os em relação à minha mãe, e lá estava o gato atravessando a estrada e, do outro lado do rio, as luzes de um carro. O silêncio na floresta. Meu amigo, Jan Vidar, estava ali, em algum lugar, e também a garota por quem eu era louco, e a forma da qual eu pensava nele e nela, e a luz da janela meio que brilhava, e me lembrei de um episódio na pista de esqui, e abri a porta, e ali, no chão, os sapatos daquela época, o cheiro, a atmosfera.

Minha memória é basicamente visual, é disso que me lembro, de cômodos e de paisagens. Não me lembro do que as pessoas nesses cômodos me diziam. Quando escrevo ou leio, nunca vejo letras, nem frases, vejo apenas as imagens que elas produzem. O mais interessante é que o processo de escrever ficção é exatamente o mesmo para mim, a única diferença é que as paisagens são imaginárias. Essas imagens têm relação com a forma da qual você pensa em um lugar no qual você nunca esteve, onde você imagina tudo, as casas, as montanhas, os mercados. E então, no segundo em que você está lá e vê como o local é de verdade, o peso da realidade cai sobre sua versão imaginada. Mas de onde veio aquela versão, em primeiro lugar?

Seu pai e Jan Vidar são personagens em Minha luta. Você acha que uma memória ou ensaio realista tem obrigações éticas para com seus indivíduos?

Sim.

Faz sentido pensar em Minha luta como uma espécie de confissão no sentido agostiniano, uma autobiografia espiritual?

O livro flerta com essa dimensão, é claro. Mas não é algo no qual eu tenha pensado estilisticamente.

Então eu talvez esteja errado sobre Agostinho, mas você estudou a Bíblia, não? Você traduziu partes dela. Seu segundo romance é sobre uma questão teológica bastante tradicional — a natureza do divino pode mudar? Não consigo deixar de pensar que você tenha uma relação profunda com a escrita religiosa, algo além da busca moderna por uma dimensão de vida “espiritual”.

Devo dizer que é difícil falar sobre isso.

Por dois anos trabalhei como uma espécie de conselheiro em uma equipe que traduziu a Bíblia para o norueguês. Foi lá que aprendi a ler. A diferença entre as duas línguas foi um choque, e tornou possível a experiência, não apenas o reconhecimento, da diferença entre linguagem e o mundo, a arbitrariedade da qual todos falavam nos anos oitenta era, de repente, visível para mim.

A morte do pai. Companhia das Letras
Uma outra lição foi a de que, no Velho Testamento, tudo é concreto, nada é abstrato. Deus é concreto, os anjos são concretos, e tudo tem a ver com corpos em movimento, o que dizem, o que fazem, mas nunca o que pensam. Não há especulações, nem reflexões. Até mesmo as metáforas são conectadas a corpos. Tornei-me particularmente interessado na história de Caim e Abel, quando descai o semblante de Caim, e Deus pergunta: “Por que descaiu o teu semblante? Levante-o!” Caim não encara os olhos de ninguém, e ninguém encara os dele. Isso é para se esconder do mundo e do outro. E isso é perigoso.

No sexto livro de Minha luta, eu escrevi quatrocentas páginas sobre o Minha luta de Adolf Hitler. Hitler foi um homem que viveu por um ano sem ver ninguém, apenas sentado em seu quarto, lendo, e, quando saiu desse quarto, não permitiu que ninguém se aproximasse, e ficou assim, intransigente, pelo resto de sua vida, e uma coisa característica de seu livro é que há um “eu” e um “nós”, mas não um “você”. E, enquanto eu escrevia sobre Hitler, um jovem norueguês que passou cerca de dois anos sozinho e escreveu um manifesto também com um “eu” poderoso, e um “nós”, mas também sem nenhum “você”, massacrou sessenta e nove jovens em uma ilha. Em outras palavras, descaiu-lhe o semblante.

A diferença entre linguagem e o mundo, a ênfase no aspecto material do mundo, e Hitler escrevendo o Minha luta me levou a Paul Celan, porque a língua na qual ele escrevia foi destruída pelos nazistas. Ele não podia mais escrever sangue, que circulava em suas veias, ou solo, sobre qual ele andava. De repente, nenhuma palavra representava algo geral, que implicava um “nós”, porque o “nós” nessa língua não era o “nós” de Celan.

Seu poema final sobre o Holocausto, então, é um poema no qual cada palavra parece ter sido criada pela primeira vez, todas no singular, porque o “nós” foi perdido, caiu em um abismo, é o nada, e nisso vemos uma outra coisa que não história, vemos, mais especificamente, o lado de fora da linguagem, que é, na verdade, impensável, porque pensamentos são linguagem, mas ainda presente. É o mundo, fora de alcance para nós, e é a morte.

O que vê de diferente entre você e um escritor como Celan?

Meu livro é muito sobre o que experiências são e para que elas servem, mas não é sobre as experiências em si. É uma coisa secundária. É um livro secundário. Um livro sobre experiências, mas que não produz essas experiências. É por isso que escrevo sobre Celan em vez de tentar escrever como Celan. É o segundo lugar. Eu sei disso, e nem mil resenhas positivas podem me fazer esquecer. No fim, quero escrever um livro que chegue lá. Essa é a ambição, é claro.

E você consegue imaginar como seria isso?

Não. É impossível. Tenho apenas de começar a escrever e esperar que algo aconteça durante as primeiras mil páginas.

O humor é uma grande parte do seu trabalho, nas pequenas mudanças em como você se sente sendo você mesmo de um momento a outro. Se sentindo bem em um minuto, e no outro pensando, ‘que pilha de merda foi essa’. É essa a sua experiência de vida, ou apenas algo que que a forma te devolve?

É o resultado de seguir as situações bem de perto. Mas não significa que não hajam consequências existênciais! Em um romance, como na vida real, humores e atmosferas, essa pequenas mudanças na mente, são parte de pensamento e reflexão. Temos a ideia de que o puro pensamento existe. Não existe. No meu mundo, tudo que vejo são agendas ocultas, mais frequentes do que não ocultas mesmo de nós. As pessoas não sabem nada de si mesmas, por isso elas fazem o que fazem.Elas acham que sabem, mas oh não, nada disso. Por exemplo, Adorno defende a razão em seu O Jargão da Autenticidade, e ataca os fenomenologistas. Isto em apenas poucos anos após a guerra, e seus argumentos são raivosos, mas ele não reconhece isso. Irracionalidade, sentimentos – pertencem a Heidegger e seus seguidores. Mas Heidegger de sua parte, discutiu o humor, e o considerou central de uma forma com a qual podemos nos relacionar com o mundo, porque sempre temos humor, assim como sempre há o clima.

O humor afeta o pensamento. Faz dele muito mais complexo. E porque tenho cerca de três mil páginas, posso usar digressões ensaísticas em um sentido narrativo. Tenho ensaios me representando aos vinte e cinco, que são muito, muito estúpidos, onde digo uma porção de coisas puramente infantis e idiotas. Então, cinco anos depois, tenho outra parte ensaística que se relaciona com isso, mas é bem mais sofisticada. Algo aconteceu. Há um tipo de narração no material ensaístico que nem sempre se faz estritamente como um ensaísta.

Como ensaísta, você apenas escreve. Você não usa a si mesmo nessse sentido. Você não providencia o ensaio estúpido para mostrar como a idade muda seu pensamento por exemplo.

Eu estava na Alemanha, falando com meu editor alemão, e estávamos falando sobre isso porque no último livro tem esse longo ensaio sobre Hitler, tratando Hitler como um ser humano, e esse é um assunto muito delicado na Alemanha, claro. Então o que deveríamos fazer com isso? Deveríamos pedir a um historiador para o ler e modificar, e tratar como um ensaio? Ou devemos apenas tratar como um maluco da Noruega escrevendo o que pensa?

O que vocês decidiram?

Manter como está.

Quando estávamos conversando via e-mail e nos preparando para essa entrevista, você disse nunca ter usado o Skype antes. Posso perguntar o que pensa disso?

Eu realmente o odeio. Detesto o fato de que estamos perdendo nossos locais, no sentido do que nos cerca, não apenas restaurantes ou lojas. Realmente desprezo o que têm acontecido nos últimos trinta ou quarenta anos. O mundo físico se foi.

Isso me lembra de como você escreveu sobre Lucretius, gostando dele por sua atenção a presença física do mundo. É interessante, porque seus livros abordam esse problema teoricamente, mas ao mesmo tempo a textura deles é bem física. Você encosta suas mãos em cada objeto – torradas, garrafas, cigarros, toalhas de mesa.

Isso era algo em que eu pensava o tempo todo enquanto escrevia. É central para mim. Mas como você disse, é um paradoxo. É escrita, não a coisa real.

Um outro amor. Companhia das Letras
O sexto livro de fato acaba na Noruega, com Anders Breivik matando sessenta e nove crianças na Ilha de Utoya. Isso aconteceu enquanto eu escrevia. Realmente é uma situação em que ele tinha essas imagens do mundo. E então ele vai a ilha e mata essas pessoas. É um ato físico. Um coisa que ele disse na corte foi “Era tão estranho, atirar em talvez sete adolescentes, eles estavam apoiados na parede, e não se mexiam. Por que não estavam se mexendo? Eu esperava que eles se movessem, tentassem escapar, mas eles estavam apenas parados enquanto eu atirava neles.” Aquilo não correspondia as imagens que ele tinha em mente.

E o romance acaba ali, naquele lugar, naquela colisão entre o paraíso abstrato que temos acima de nós e a nossa Terra física.Onde aconteceram as matanças de Breivik. É a mesma coisa que aconteceu durante o nazismo, quando Hitler impôs uma imagem abstrata sobre a realidade física do mundo. É isso que me interessa na vida cotidiana, quando isso acontece.

Enquanto Breivik atirava nessas pessoas, ele ouvia a trilha sonora de Senhor dos Anéis em fones de ouvido. Ele jogava Call of Duty obsessivamente. Ele habitava mundos virtuais.

Breivik jogava muitos jogos de computador. Ele jogou profissionalmente por anos. Essa é parte interessante de como aconteceu, os limites entre o imaginário e o real. Isso está totalmente manchado nele. Era isso que o impossibilitava de matar. Porque normalmente é impossível matar, ou pelo menos matar mais do que um ou dois.
Se você está na marinha norte-americana, você é treinado em um processo desumanizador. Você é treinado como um profissional, e faz isso com seus amigos, faz isso por eles, e mesmo assim é difícil. Mas Breivik fez tudo sozinho, então não deveria ser possível, mas foi possível, e essa é uma das situações sobre as quais reflito no último livro.

Marinha e nazismo – soam muito maiores e mais ideológicas do que os pequenos e cotidianos eventos dos livros um e dois.

Meu livro é completamente anti-ideológico, em todos os sentidos. É sobre o oposto da ideologia. É sobre o pequeno e o minúsculo, onde estamos na vida. Mas acaba com a colisão deste mundo com a ideologia, que é porque escrevi sobre o nazismo e sobre esses temas. É por isso que acaba ali.

Você já jogou videogames?

Sim. Em 1992, 1993. Eu joguei Doom e esses tipos de jogos. Onde você apenas atirava nas pessoas. Eu podia jogar por vinte e quatro horas, sem problema. Era completamente viciado.

Você ainda fuma?

Sim.

Por que você é viciado, ou por gostar?

Eu gosto, infelizmente. Há um escritor na Suécia, chamado Stig Larsson, não o de ficção criminal mas um outro, um modernista, um escrito fantástico, que foi viciado em drogas nos últimos vinte ou trinta anos, e ele teve um infarto então teve de parar. Era por causa da velocidade com que ele tomava. Mas ele disse, se o cigarro me ajuda, é meu dever enquanto escritor de fumar. E se a velocidade ajudasse, seria meu dever como escritor acelerar. Em um sentido é verdade. Mas eu terei de parar um dia – quer dizer, eu tenho crianças.

E quanto ao álcool?

Sou uma pessoa restrita, e não sou bom socialmente, então a bebida é um tipo de liberdade para mim. Mas as consequências são grandes para mim. Não posso parar. Eu fico extremamente bêbado. Recebemos amigos aqui três semanas atrás, e eu era o único bêbado, e fiquei tão extremo que não consigo me lembrar de nada. Foi um desastre, sabe, um jantar e o anfitrião era o único bêbado! Meia garrafa. Eu apenas estava – não conseguia parar. Eu não caio, não adormeço, posso apenas beber beber e beber, e você não pode realmente ver isso em mim, mas por dentro estou totalmente bagunçado e fodido. E como tenho crianças, devo ter alguma dignidade em meu comportamento, e não é o que faço quando estou bêbado. Então tento ser bem cauteloso, é disso que estou falando.

Posso perguntar como o romance afetou seu casamento? O que você fez é tão extremo. É como se você tivesse inventado um novo tipo de casamento, onde metade do casal é transparente e não tem segredos.

Não pensei nisso enquanto fazia. Não pensei nas implicações, em nenhum sentido. Eu estava tão frustrado que não previ as consequências. Pensei, se a consequência for que ela me deixe, então ok, ela pode ir. Era assim. Havia um certo desespero que tornava isso possível, [mas] eu não poderia fazer isso hoje.

Há muito mais em uma relação do que você pode dizer. Você toma apenas mais um passo para trás dentro de si mesmo. Eu nunca entendi a psicanálise. Mencionar coisas não muda nada, não ajuda em nada, são apenas palavras. Existe algo muito mais profundo em um relacionamento do que isso. Revelar histórias e querê-las – são apenas palavras. Amor é algo além.

A escrita de Minha Luta te deu o que você esperava?

Não posso falar por outros escritores mas escrevo para criar algo que seja melhor para mim, acho que é a motivação mais profunda, porque sou muito relutante e envergonhado. A escrita não faz de mim uma pessoa melhor, nem mais sábio nem mais feliz, mas a escrita, o texto, o romance, é uma criação de algo fora de mim, um objeto, meio que neutralizado pela objetividade da literatura e da forma. O temperamento, a voz, o estilo. Tudo nele é cuidadosamente construído e controlado. Isso é a escrita para mim – uma mão fria em uma testa quente.

Entrevista original em inglês.

Tradução : André Caniato e Walter Bach

Entrevista também disponível abaixo:

http://homoliteratus.com/completamente-sem-dignidade-entrevista-com-karl-ove-knausgard/

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António Lobo Antunes

Publicado: maio 8, 2015 em Crônicas Urbanas

“Eu só sou o António Lobo Antunes com o papel na mão. Sem o papel na mão, sou um chato.”

António Lobo Antunes: “Não tenho muito jeito para viver”

Como são os dias de alguém que dedica uma vida inteira à escrita? No momento em que chega às livrarias Caminho Como uma Casa em Chamas, aqui fica o relato de uma entrevista com o escritor, entrecortada com “a pavorosa realidade” do quotidiano

 Não gosta de conversas, de entrevistas então ainda menos. “A única coisa a que os leitores têm direito são os livros”, costuma afirmar António Lobo Antunes, 72 anos. Com isto, o escritor quer dizer que o que importa é a literatura. E também que não se esperem grandes revelações sobre a sua vida privada: “Tenho relações de intimidade com duas ou três pessoas.” Do dia a dia de Lobo Antunes há apenas algumas coisas que perpassam nas crónicas que publica na VISÃO, sobretudo nas que se aproximam mais do género diário pessoal.

“Eu só sou o António Lobo Antunes com o papel na mão. Sem o papel na mão, sou um chato.”

Não, não é um chato. Apesar de todas as angústias, António Lobo Antunes mantém um sentido de humor de que vale a pena falar. Adora uma pequena história, um diálogo sem nexo, uma incongruência divertida. É capaz de se rir até às lágrimas de uma frase possidónia proferida por alguém, não importa quem. E de voltar a contá-la, acrescentando-lhe uma graça que nem todos poderão gabar-se de possuir. Lobo Antunes tem, isso sim, uma vida rotineira, uma vida de dedicação total à escrita. E, ao mesmo tempo que diz  escrever porque não sabe fazer mais nada, também é capaz de dizer que está cansado de tudo.

“No princípio só vinha para aqui escrever. Já estou farto, apetece-me mudar de sítio. Nunca aguento muito tempo numa casa. Passado uns tempos, começo a ficar cansado. Não sei o que é e, sobretudo, não sei até que ponto é que quando estou a dizer que estou farto desta casa, não posso estar a dizer ‘estou farto de mim’.”  

Vem aí uma daquelas alturas. António Lobo Antunes já acabou de escrever a primeira versão do livro (o terceiro depois deste que agora chega às livrarias, Caminho Como uma Casa em Chamas, sendo que, pelo meio, ainda terminou outro, que sairá no próximo ano) e tem em cima da sua mesa de trabalho um monte de folhas A4 que é preciso rever e cortar, cortar e rever. Anda às voltas com uma personagem, uma surda-muda que lá aparece. E lembra-se dela, a propósito de nada, antes de, na Avenida de Roma, entrar para o dentista onde há meses passa duas tardes por semana.

“- Não tenho muito tempo livre.

– E o que faz nos intervalos dos livros, quando não está a escrever?

– Coisas inconfessáveis [risos].”

Os dias estão mais frios e, às quintas-feiras, já não há jantar em casa dos pais, em Benfica. A mãe, Margarida, morreu quase há dois meses; um dos irmãos, Pedro, vai fazer um ano. Na semana passada, pela primeira vez depois da morte da mãe, o seu irmão João, o neurocirurgião, convidou os manos para jantar. Da casa da infância, António Lobo Antunes só quis trazer uma fotografia da mãe. Tem-na, emoldurada, nova, bem vestida e elegante, rodeada de estantes com livros até ao teto, de frases escritas na parede, de quadros pintados por Júlio Pomar.

“Nos hospitais, vi muita gente morrer, mas nunca vi ninguém chamar pelo pai. Agora olho para aquele retrato e penso: é a minha mãe. Só com a morte dela é que me dei conta da sua importância. Há aquela frase de Conrad tão dramaticamente verdadeira: tudo o que a vida nos pode dar é um certo conhecimento sobre ela que chega tarde demais.” 

Impressiona qualquer um, a quantidade de frases que António Lobo Antunes sabe de cor. Poemas, bocados de livros, diálogos, histórias. Sim, memória de elefante. As suas entrevistas estão cheias de citações, como se houvesse sempre uma à medida de cada pergunta jornalística. Já se disse aqui que não gosta de entrevistas, “uma espécie de interrogatório policial” (acha o próprio) durante as quais o alegado suspeito não larga a sua personagem (acrescentamos nós). E este, em concreto, diz apenas o que quer. Nos últimos tempos, por exemplo, tem-lhe apetecido dizer mal do Governo.

“Os portugueses merecem muito melhor, merecem muito mais do que o Governo que têm, muito mais do que a maneira como os obrigam a viver. Já ouviu um discurso do primeiro-ministro? A quantidade de erros de português que ele dá… Como é que podemos ser governados por pessoas que nem sequer sabem falar português? Não posso com esta mediocridade, com este vazio de ideias, com esta mentira constante. ‘Decisão irrevogável’? O meu pai nunca admitiria que um filho seu voltasse atrás com a palavra. E isto passa-se no mundo inteiro. Há pouco tempo, George Steiner comentou comigo que nenhum dos bons alunos de Cambridge ia para a política: só os medíocres vão para a política.” 

António Lobo Antunes sobreviveu a mais um cancro. A dois, um em cada pulmão. O médico que o assistiu disse que o curava – e curou. Faz exames regulares, come rebuçados de mentol para ver se consegue reduzir o número de cigarros que ainda fuma. Fica com a boca impregnada de mentol. E continua a fumar. “Dá-me prazer.” Tirando as viagens ao estrangeiro, sempre por causa dos livros, pouco sai de casa. Não vai de férias, nem de fim de semana (houve um tempo em que, como os magalas, tirava as tardes de sábado).

“Não tenho muito jeito para viver. E acho que os livros são a minha redenção.” 

Escreve dez horas por dia, sete dias por semana, com uma disciplina que poucos escritores no mundo devem ter. E a vida só existe assim. Umas vezes, os livros são tudo. Outras vezes, são “só papéis”: “O que é isto comparado com a pavorosa realidade de, daqui a nada, estar no dentista?”. É capaz de fazer, de enfiada, seis crónicas, “prosinhas”, para depois regressar ao livro sem interrupções (o galope é outro, já explicou várias vezes). Almoça num dos cafés do bairro onde vive, o Conde Redondo. O prato do dia e, muitas vezes, uma sobremesa (tem gostos de garoto, pede leite-creme ou mousse de chocolate). Recebe visitas de meia dúzia de pessoas, três filhas, amigos, a editora Maria da Piedade Ferreira. E telefona a outra meia dúzia. De resto, está sempre ali, a escrever. Contabilidade bibliográfica: 25 livros (não quer que lhes chamem romances), mais cinco volumes de crónicas.

“A presença das pessoas não me incomoda nada. Desde que não falem comigo, escrevo em qualquer sítio. A Agustina dizia que, se fosse preciso, até escrevia numa cabina telefónica.” 

Conta-se que, quando terminava um livro, Iris Murdoch dava uma volta ao quarteirão e começava logo a escrever outro. No caso de António Lobo Antunes, os intervalos entre os livros duram três ou quatro longos meses. Nessas alturas, lê tudo o que apanha. Romance, ensaio, poesia. O que quer voltar a ler, o que gosta muito de ler (Tolstoi e Dostoievski, ditos com a bonita pronúncia que um amigo, professor de literatura russa, lhe ensinou), o que vai saindo, o que lhe mandam. É um grande leitor.

“Quando uma pessoa tem talento, percebe-se logo. Às vezes até na cara se percebe. As pessoas com talento têm uma certa aura. Marlon Brando pode estar metido num cantinho da tela, mas nós só reparamos nele quando olhamos para lá. Uma vez, vi Chagall a pintar os tetos da ópera de Nova Iorque. Era um homem de 80 e tal anos, pequenino, feiíssimo, estava sentado no chão a trabalhar e, no entanto, eu não consegui tirar os olhos dele.” 

Depois, há um dia em que marca uma data no calendário, para se obrigar a si próprio a começar. Não faz concessões de espécie nenhuma. As personagens não têm nome, os livros não obedecem a um plano organizado, têm o número de páginas que precisam de ter. Nas entrevistas, fala pouco (“Não tenho nada para dizer”) e quase nada sobre o livro que é suposto ser promovido. Tem por hábito citar D. Francisco Manuel de Melo: “De que trata o livro? O livro trata do que vai escrito dentro.”“Gosto das pessoas que têm cara de quem vive. E isso não tem a ver com beleza. Normalmente, as pessoas que eu acho atraentes não são bonitas, têm um charme lento, que eu não sei explicar. Acontece-me o mesmo com as cidades. Não gostei nada de Paris nas primeiras vezes que lá fui, mas depois, a pouco e pouco, aquilo vai entrando dentro de nós. Não há nada a fazer, o talento é como um berlinde na mão, ou se nasce com ele ou não se nasce. O grande Curro Romero (conhece Curro Romero, o imortal toureiro?) tinha uma frase que explicava isto: o que não se pode não se pode e, além disso, é impossível.” 

Lobo Antunes mudou-se para o Conde Redondo há meia dúzia de anos. Começou por escrever num rés do chão transformado em ateliê de design que pertencia a um primo bastante mais novo (José Maria Nolasco, que, entretanto, morreu). Era um sítio escuro e frio, no inverno chegava a escrever de luvas e casaco. Depois, Tereza Coelho, a sua antiga editora, que também já morreu, descobriu a casa onde hoje vive (“onde estou”, prefere dizer) e insistiu em que ele viesse para aqui.

“Comprei esta casa com o dinheiro de uma tradução de um livro que vendi para Espanha.”

A casa – num prédio recuperado, com grandes janelas a toda a largura da fachada – não fica longe do Hospital Miguel Bombarda, onde, quando ainda exercia psiquiatria, passava muito do seu tempo. Isso, agora, já não lhe diz nada. Entra e sai da garagem e, quando sai a pé, não passa do virar da esquina (isto não se devia divulgar, mas atravessa a estrada fora da passadeira, quase sem olhar). Quando alguém, seu leitor, se aproxima, fica satisfeito.

“É agradável as pessoas gostarem do nosso trabalho. Temos uma sede infinita de amor. E de reconhecimento. Por muito certos que estejamos do nosso talento e da nossa capacidade de escrever.”

E agora que – graças a um superaparelho que lhe “ressuscitou” um ouvido quase morto – ouve melhor, já nem tem a desculpa da surdez para fingir que não ouve.

um dos últimos remanescentes de um mundo perdido

http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,ele-dizia-nao,1679867

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