Arquivo de setembro, 2021

Arte inacabada e seus amálgamas

Ensaio

Marcos Torres

Antes de começar este texto propriamente dito preciso dizer que este ensaio terminará de forma inacabada. Tanto pelo seu próprio caráter ensaístico quanto pelos seus aparatos teóricos e objetos aqui analisados que também não deixam nenhuma margem de segurança para compreensão e apreensão total de seus conteúdos e objetos artísticos. Isso se deve pelo próprio processo de análise de projetos em constantes mudanças de perspectivas e suas relações amalgamadas tão difíceis de capturar sua totalidade. Tratarei aqui da análise de uma arte inacabada e seus amálgamas, uma arte em processo e em abismo, portanto.

Examinarei ainda que de forma precária alguns aspectos construtivos do romance Avalovara conjugado com alguns exemplos da arte contemporânea e seus amálgamas e inacabamento por meio de diferentes processualidades. Não há dúvidas de que a arte contemporânea está atravessada não só por relações dialógicas como também pelo amalgamento entre diferentes linguagens artísticas que convida o expectador a participar destas construções como campo de possibilidades para novas expressões textuais, visuais e performáticas a partir de parcerias artísticas e redes de criações colaborativas. A fim de apresentar possibilidades para novas maneiras de ver o mundo e suas potencialidades artísticas dentro da arte contemporânea e mais especificamente no entrelaçamento da literatura com outras artes, como será aqui brevemente especulado nesta exposição.

Há muito tempo que a caligrafia tem na letra parte de encadeamento e a beleza na apresentação do belo. As letras como ornamentações, cores e forma. Ainda hoje é justo e não é exagero dizer que Mallarmé é um dos paradigmas da arte e poesia contemporâneas. Com isso nos oferece a ideia de modernidade como progresso em meio a um tempo veloz cujo verso livre é o não-sentido linear, e, sim, o futurismo e o cubismo que trazem no primeiro a ideia de imagem em movimento enquanto no segundo traz o movimento do expectador ao entrar em contato com a imagem. Mas tudo isso já sofreu grandes transformações justamente diante de um mundo em constante movimento tanto no que se refere à arte quanto na constituição do sujeito na sua relação com o tempo e espaço e suas subjetividades, especialmente chacoalhando o academicismo da poesia que vigorou durante muito tempo nas Academias e nos versos dos poetas, rompendo essa barreira a fim de fazer pontes entre poesia e pintura. 

Se o futurismo traz a ideia de movimento, o cubismo especialmente em sua terceira fase traz um ponto de insurgência voltado para a colagem trazendo pedaços de inserções da realidade para o processo de representação. O que vemos são imagens criando uma nova ordem, portanto, sob a luz da poética do fragmento e dos recortes e colagens. Sem de modo algum deixar de considerar a importância do expectador nessa construção.

Alguns aspectos são importantes dentro da narrativa em abismo, ou da mise en abyme nos termos de Lucien Dällenbach, uma possibilidade para entendermos melhor as processualidades artísticas e seus inacabamentos. 

No filme Blow up a resolução de uma tragédia parece insolúvel para uma trama em abismo e fugidia sob a sombra de um cadáver sem causa-mortis definida e resoluções satisfatórias para decifrar seus enigmas de uma vez por todas a partir de suas generalidades. Para Dällenbach, “não podemos, contudo, ficar por estas generalidades, a pretexto de que este modo de intervenção se pode observar sempre e em todo lado”. 

O filme Blow up nos apresenta bons exemplos para pensar o desenvolvimento da arte nos últimos anos. No filme de Antonioni com sua natureza fotográfica o menor detalhe sempre é pensado, cujos pedaços textuais se apresentam como possibilidades narrativas dentro de um jogo entre um plano social e um momento político. Ficções e política em constante diálogo, portanto. E talvez aí resida em Blow up uma chave narrativa dentro da diegese cinematográfica para compreensão de sua narratologia e dimensão funcional entre tempo e espaço, principalmente no que se refere a uma interpretação aberta como sugestão e não como definição, trazendo, portanto, a ideia de obra aberta nos termos de Umberto Eco. Blow up também parece trazer como sugestão e ilustração as diferenças entre o escritor e o artista visual, ao mesmo tempo em que apresenta os desafios entre o verbal e o não-verbal, com uma ligação e religação dos fios narrativos, em meio às relações de poder e dominação, tão em voga em nosso mundo contemporâneo, de modo que também podem ser vistas em Blow up na relação do fotógrafo com as postulantes a modelos para capa de revistas e campanhas de moda.

Talvez a película de Antonioni nos convoque para encarar a arte dentro de uma nova perspectiva, principalmente ao abrirmos mão do controle, da dominação e da técnica no modo repetitivo e mecanicista como os operários na fabricação de parafusos em Tempos Modernos. Nesse sentido, é importante estar aberto às novas possibilidades dentro do campo artístico e seu dinamismo e na ludicidade que o teatro de rua e da vida contemporânea pode nos proporcionar, a fim de compartilharmos as performatividades vividas e experienciadas no desenrolar dos acontecimentos cotidianos, individuais e coletivos por meio de redes de criação colaborativas.       

Outros exemplos também podem ser encontrados no livro Avalovara, de Osman Lins, em sua busca pelos fios perdidos ou às vezes soltos e sem pontos de costura:

Estes fios no fundo da cisterna, presos nos cornos das trevas, vêm interferir, como um ruído importuno ou a vinda de estranhos, em meu trabalho secreto, a procura cega de uma indicação (o onde, o nome, o porquê) que aplaque em minhas veias o castigo de buscar. Enxergo mais do que pretendo e suporto. Por que, então, não vejo o que procuro? (2005, pág.69)

(…) “a ‘obra dentro da obra’ é, de novo aqui o que convida a interpretar o destino do protagonista como uma descida aos Infernos e uma transmutação salvadora. Mas faz mais ainda: como uma liturgia cósmica celebrada em pleno coração do texto, ela estende o seu poder de irradiação a todo o romance, que sacraliza e destemporaliza até fazer dele uma gesta situada in illo tempore. (Dällenbach, 1991, pág.53)

A processualidade da arte contemporânea também pode ser pensada por este prisma. Uma arte sendo frutos estranhos (cf. Florencia Garramunõ, 2014) como parte do cotidiano do artista sempre em busca de uma indicação que alimentem suas interrogações neste mundo de poucas respostas às suas indagações, em meio a pontos escuros e cegos, onde há mais proposições e sugestões do que respostas definidas e claras. Como a obra Guernica de Picasso, uma forma de revolta pelos horrores da guerra e tirania do General Francisco Franco, ao mesmo tempo em que esta mesma obra coloca em debate as atrocidades e barbárie ainda acontecendo em nossos dias. Uma obra aberta para novas possibilidades de interpretações.    

O livro Avalovara é sem dúvida um texto que traz grande poder de radiação em sua construção narrativa, tanto do ponto de vista do enredo como também na apresentação estrutural ligada às artes plásticas e ao cinema.

Se passo horas na sombria umidade da cisterna e se lanço a rede até não poder mais, não é com apanhar algum dos poucos peixes aí prisioneiros: procuro fazer, deste ato ocioso e que executo mal, um eixo em torno de onde giram, nunca chegando a termo, minhas indagações sem cabeça. Só, sob a cobertura — estalam as folhas de zinco, nas noites mais quentes —, vou jogando a rede, colhendo-a e indagando. (Onde? O quê? Por quê?) De respostas, nem sinal. (2005, pág.69)

Neste fragmento de Avalovara, entre tantos outros, fica sugestivo seu caráter processual. A arte movida pelas indagações, o laborioso trabalho artístico nem sempre bem executado no sentido de seu inacabamento e imperfeições sempre em busca de uma melhor expressão em meio a sua processualidade temporal e espacial, ao mesmo tempo em que vai se fazendo e refazendo-se em meio a uma série de indagações, às vezes sem respostas ou sinal em algum momento, daí a ideia do inacabamento por meio de pontos de reflexão. “Não se pode ignorar, contudo,” conforme escreve Dällenbach, “que outros motivos, prescrevem a escolha de tais representações”. Para Dällenbach, a obra de arte traz em sua própria narrativa uma natureza polissêmica, com o objetivo de trazer com isso uma ação refletida dentro de certa temporalidade que anula ou pelo menos neutraliza o tempo da história. No mesmo movimento em que o tempo da narrativa é gasto por ela também “suspende o tempo narrado, poupa-se, assim, ao dever de refletir a sua reflexão, a reflexão de sua reflexão, e assim por diante”. (1991, pág. 68).      

A arte contemporânea nos convoca para as parcerias artísticas e suas relações dialógicas, diluindo com isso a centralidade do poder e da autoria, para o atravessamento das diferentes expressões artísticas num processo de continuidade entre as diversas redes de criação.

“Procurar na vida o rumo é igual a buscar, num palheiro, a agulha que pode ter caído em outra parte.” (Lins, 2005, pág.111)

Pensar em criação como processo, já implica continuidade: um tempo continuo e permanente com rumos vagos. A criação é, sob esse ponto de vista, um projeto que está sempre em estado de construção, suprindo as necessidades e os desejos do artista, sempre em renovação. O sentimento de que aquilo que se procura não é nunca plenamente alcançado leva a uma busca constante que se prolonga, que dura. O tempo da criação está estreitamente relacionado, portanto, ao tempo da configuração do projeto poético. (ALMEIDA SALLES, 2006, pág.59)

Outros fatores importantes para pesarmos a arte contemporânea e sua processualidade têm como pontos de confluência a continuidade, sem muita precisão de seu início e fim, conforme Almeida Salles, e a ideia de amálgama a partir das diferentes parcerias artísticas entre os diferentes campos de atuação dos artistas envolvidos em redes de criação, levando com isso o espraiamento e algumas vezes a dissolução da autoria.

Trata-se de uma busca constante por um modo de expressão e possibilidades dialógicas sempre em processo de construção movido por diferentes interpretações tanto dos artistas como também do engajamento do expectador leitor nessa construção, embora seja importante salientar que tudo isso se dá a partir de uma busca constante e às vezes prolongada, no sentido de considerar um projeto poético como uma obra aberta a novas possibilidades de interpretação e apreensão no interior de sua própria processualidade movida por uma força dinâmica dentro da arte contemporânea e seus amálgamas.      

A continuidade nos leva ainda a observar que nunca se sabe com precisão onde o processo se inicia e finda. É sempre vã a tentativa de determinar a origem de uma obra e seu ponto final. Sob a perspectiva das inferências, redes de interações, observamos uma diversidade de conexões que parece propiciar uma obra e, do mesmo modo, diferentes desdobramentos de uma obra entregue ao público. A progressão potencialmente infinita pode ser percebida nas modificações que dão origem a outra edição, outra apresentação, outra exposição ou montagem. Podemos também encontrar temas sendo revisto, personagens reaproveitado etc. Pode-se falar que o artista mostra publicamente sua obra em instantes em que o “ponto final” é suportável. Temos assim uma definição mais aprofundada do movimento da criação, que nos leva a falar de sua continuidade sem demarcações de origens e fins absolutos.    (ALMEIDA SALLES, 2006, pág.59)

Talvez aqui nesta citação acima estejam os maiores investimentos do escritor Osmar Lins na construção de sua vasta Obra, em especial no projeto de criação do livro Avalovara. Em Osman Lins há claramente um processo de continuidade no que se refere à construção de uma narrativa autoral, com a sequência na escrita de diversos livros em diferentes gêneros textuais sendo ao mesmo tempo apropriados e adaptados para a televisão, o teatro e o cinema. A busca constante por um certo modo de expressão e assinatura autoral, muitas vezes carregando a angústia ao colocar um ponto final suportável.

Essa reversibilidade ou retroatividade gera um tempo feito de idas e vindas, fluxos e pausas, que envolve julgamento retrospectivo. Nesses momentos, o futuro revisa e redefine o passado. Neste contexto, é preferível falar da experimentação como movimento e não como evolução: não há segurança de que a obra em construção esteja caminhando de uma forma pior para outra melhor. A melhora não é uma certeza. No vai-e-vem da busca do artista, assistimos a muitas recuperações de forma que foram, em outro momento, negadas ou rejeitadas. Vale lembrar que aqui reside um dos motivos pelos quais o artista preserva formas anteriores: sabe que suas escolhas podem ser refeitas. (ALMEIDA SALLES, 2006, pág.62) 

A retroatividade me parece ser a grande mobilizadora para o que está sendo produzido na arte contemporânea e sua processualidade. Considero importante o que escreve Cecilia Almeida Salles ao pontuar a ideia de idas e vindas, fluxos e pausas, como também podem ser vistos na espiral e no quadrado mágico de Avalorava, onde parecem ser marcas vívidas nas expressões artísticas atuais. Do mesmo modo em que essas expressões artísticas colocam em jogo o embaralhamento entre passado e futuro sem a ideia hierarquizante de melhor e pior como um conceito evolutivo, onde também são deixados de lado ou pelo menos tratados de forma colateral no que se referem às suas dicotomias e estereotipias.

Se em Avalovara há uma constante procura por um rosto (ainda) indefinido como em algumas pinturas de Francis Bacon, como a própria busca do artista contemporâneo por um certo modo de expressão, há também um engajamento e comprometimento pelas questões político-sociais  e culturais na construção de sua poética. Engajamento e comprometimento que também podem ser vistos num outro escritor contemporâneo como Bernardo Carvalho, por exemplo, que nos últimos anos seus romances publicados se devem ao fato de ter observado a necessidade de escrever livros, de acordo com o autor, mais políticos, em busca de uma nova perspectiva temática, assinatura autoral e projeto poético, como parecem estar sugerido por Osman Lins em O pássaro Transparente, A rainha dos Cárceres da Grécia e Avalovara, por exemplo.         

Uma poética que se deseja política na enfática defesa de um lugar para a literatura no mundo, em geral; e de um lugar para uma literatura nordestina emancipada da miséria, em particular. Um lugar para a voz poética, que não é menos política do que as vozes filosófica, sociológica, científica e religiosa, embora tenda a ser quase sempre menos dogmática. E um lugar para a voz nordestina, que possa falar de outros assuntos além da seca e da pobreza, do retirante e do cangaço, sem ser acusada de “alienada” e “alienante”. É a essa tendência ao não-dogmatismo do discurso poético que a literatura osmaniana se apega, quando reflete, no encontro do protagonista com a mulher sem nome – um nordestino e a outra paulista – à fusão das duas “pátrias” do regionalismo nordestino: a que fala do “mesmo” como um eterno-retorno, na circularidade do destino traçado na adversidade de uma região aparentemente desfavorecida pelo clima (e seguramente pela má-vontade de seus governantes); e a que continua a falar do “mesmo” na linha de fuga historicamente buscada pelo emigrante no sul do país, onde se depara sobretudo com o preconceito, o desemprego ou o sub-emprego e a marginalidade. (FERREIRA, 2013, pág. 8)

Destaco aqui também a interatividade de gestos do artista, como os registros em seus documentos, com uma reativação pelo olhar do crítico para sua fortuna crítica, na leitura de Almeida Salles (2006, pág. 32). Para Almeida Salles, “a interatividade ao longo da criação artística é observada em âmbitos diversos”, tal como no processo de comunicação na interação entre artista e expectador e o convite à sua participação principalmente nas artes performáticas e dinâmicas visuais no interior dos espaços interativos onde os corpos são constantemente convocados. Porque “não se pode deixar de levar em consideração”, segundo Almeida Salles, “as interações entre indivíduos como um dos motores do desenvolvimento do pensamento: conversas com amigos, aulas com mestres respeitados”, como, por exemplo, as aulas de Intersemiose na pós-graduação em letras ministradas pela professora Maria do Carmo Nino, “ou opiniões de leitores ou espectadores particulares.” (idem).

Há nas redes de criação um vasto material de pesquisa do artista como, por exemplo, os diários, as anotações, os esboços, os rascunhos, as maquetes, os projetos, os roteiros, os copiões, etc. Tudo isso sugere o que podemos inferir dentro de todo esse escopo: a identificação de um pensamento em construção e ou a visualização de uma obra em processo.

Coloco aqui o que quero chamar de projeto poético nas palavras de Ermelinda Ferreira ao se debruçar sobre a obra osmaniana e nos termos de Cecilia Almeida Salles em redes de criação e arte em processo. Porque vejo aí nessas reflexões uma forte exigência para a formulação de novos paradigmas conceituais, tanto do ponto de vista de uma abordagem crítica como também da solicitação de leitura e apreensão de seus conteúdos e proposições artísticas pelo expectador leitor.

O que há de fato sendo apresentado nessas últimas décadas é uma arte que propõe certa complexidade em sua apreensão e leitura crítica, não uma complexidade no sentido de algo difícil e hermético, mas a simplicidade de uma arte complexa no sentido do uso de materiais artesanais conjugado com os novos dispositivos digitais e seus artefatos, trazendo com isso uma maior dinamicidade e ludicidade na apresentação de seus conteúdos. Uma arte que traz novas composições artísticas, principalmente a partir da segunda metade do século XX, com novas abordagens conceituais dentro das concepções futuristas, cubistas, concretistas e principalmente surrealistas na arte contemporânea e seu dinamismo em espaço e tempo lúdicos.

O percurso do criador é longo e sinuoso. Porque mobiliza uma transformação muitas vezes radical no modo de conceber suas propostas artísticas por meio de um movimento introdutório e um conhecimento razoável sobre suas atividades cotidianas para a construção de verdades artísticas com percursos algumas vezes experimentais. Trata-se de uma percepção importante porque possibilita redes de criação e conexões com outros artistas para juntos se relacionarem com seu entorno, buscando com isso certa dissolução das hierarquias, porque há nessas relações de parcerias artísticas uma simultaneidade de ações que seguem um percurso não-linear e apontam para novas conexões que reforçam as conectividades.

Por outro lado, são redes de criação marcadas por um dinamismo, flexibilidade, mobilidade e plasticidade onde a criação está em constante ação, movida pelos deslocamentos e pelas diferentes possibilidades de uma obra se apresentar num momento e em outro na criação do artista ao longo do processo e daí a ideia de inacabamento de uma obra em constante mudança e reaparições. A estética do esboço, rascunho e anotações como mencionada linhas atrás. Porque é importante salientar que o artista sempre se alimenta das incertezas, mutabilidade, imprecisão e inacabamento.

As redes de criação são constituídas a partir de contatos e alianças para o plano das inventividades dentro de certas regras de funcionamento. Ao contrário das tendências fixas as redes de criação se expandem e ao mesmo tempo se modificam em sua estética processual num emaranhado de relações de dados, documentos e obras, para talvez com isso gerar novas ideias e possibilidades para novos modos de expressão, com muitas ações ao mesmo tempo e em completo dinamismo: mudar, alterar, modificar, transfigurar e converter em meio à natureza de seus elementos onde as autorias se constituem a partir das formulações de novas ideias e hipóteses, num processo de continuidades e algumas vezes entregues ao acaso, com vestígios do mundo que envolve o artista: as memórias pessoais, seus álbuns de fotografias e coleções de livros, agendas e diários, a ativação da memória da infância e sua ludicidade às quais se misturam entre passado e presente para as construções de imagens e objetos artísticos em movimento e constante interatividade na dinâmica de seus conteúdos e formas.  

Não importa onde os artistas estão, se perambulando em ruas da cidade como flâneures ou sentados em seus escritórios de trabalho ou ateliers. O importante é que eles e elas estejam numa efervescência cultural seja lá onde estiverem; abertos ao crescimento do pensamento por meio de relações dialógicas para o intercâmbio de ideias. “As inovações do pensamento”, segundo Almeida Salles, “só podem ser introduzidas por este calor cultural” com a convivência em sua “pluralidade de pontos de vista”:

A dialógica cultural favorece o calor cultural que, por sua vez, a propicia. Há uma relação recíproca de causa e efeito entre o enfraquecimento do imprinting (normalizações), a atividade dialógica e a possibilidade de expressão de desvios, que são os modos de evolução inovadora, reconhecidos e saudados como originalidades.   (2006, pág.39).          

Na macroestrutura da cultura é importante as interações como motores para conexões e encontros a fim de fomentar pesquisas para obras abertas e em construção. Os ambientes culturais parecem ser muito propícios para trocas e diálogos em meio às interlocuções para o confronto de ideias. Os gestos inacabados podem ser pensados como tessituras para a promoção de associações e resgates de “fatos ocorridos, pessoas esquecidas, cenas guardadas, filmes assistidos”, momentos de discussões em salas de aula, conversas com parceiros de trabalho e outras parcerias artísticas em meio a afinidades eletivas e discussões de ideias para possibilidades de novas interpretações.      

Na minha condição de pesquisador no campo da teoria literária e suas articulações com outras artes o que posso dizer a partir de minha própria experiência tanto na minha função de investigador como também na minha performance autoral no campo da arte, é que há em ambas um campo fértil para a formulação de novos paradigmas conceituais e um amplo leque de possibilidades para parcerias artísticas e amálgamas dentro de uma arte cada vez mais processual e aberta a novas interatividades para construções de conectividades textuais, visuais e performances contemporâneas na frequência de seu dinamismo e ludicidade.

Para a formação desses amálgamas as colagens possibilitadas pelo cubismo foram importantes dentro dessas novas emergências estéticas na arte contemporânea, com maior preponderância na segunda metade do século XX onde a arte não reproduz o visível, torna visível. As letras se movem, se sobrepõem, com movimentos contínuos e instáveis, se desintegrando em seu próprio abismo em movimento. Como nas artes plásticas as palavras seguem numa outra dinâmica diferente da fixidez do papel. Palavras em espaços interativos e dinâmicos saindo de sua inércia para movimentos e diálogos com o expectador leitor. Em vez da concepção em grande medida linear das páginas do livro as palavras tomam corpo em quadros em círculos, triângulos, com uma infinidade de cor, linha, volume, densidade, espaço e luz, para reflexões dos sujeitos na interação. Tudo em movimento, como no Cinema e na Arte em Quadrinho, nas Instalações Artísticas e suas dimensões variáveis e projetos conceituais.           

A articulação entre Literatura e Intersemiose é um campo vasto que deve ser melhor explorado nas próximas décadas. Todavia, se faz necessário e urgente uma radical reformulação no que tange aos programas interdisciplinares dentro das universidades brasileiras para a criação de novos programas de pesquisas e novos conteúdos disciplinares. Há uma barreira difícil de ser rompida mas ao mesmo tempo bons caminhos e novos horizontes embora impossibilitados de seguirem adiante pelos entraves e reacionarismo das ideologias radicais e grades inflexíveis impedindo a criação de novos programas e conteúdos, campo de pesquisa e fomento, redes colaborativas tal como nas artes literárias e visuais contemporâneas que nos convocam a pensar sobre seus paradigmas conceituais e suas criações artísticas em sua constante processualidade e inacabamento.

Não apenas o esboço, rascunho, diário, maquete, mas também os encontros, seminários, congressos e colóquios, os debates e discussões, as afinidades eletivas e também as divergências, para o encontro com a alteridade, para possibilidades de reformular posturas críticas e usufruir de novos saberes são igualmente importantes para o fomento a criação de novos conteúdos textuais e visuais e também para a formulação de novos aparatos críticos. Esse escopo de temas, proposições e indagações, dinamismo e movimento fazem parte da própria ideia de processualidade dentro do campo artístico, crítico e cultural. Como foram os exemplos aqui brevemente apresentados, tanto de obras artísticas quanto de textos críticos, como os fragmentos do livro Avalovara de Osman Lins, J. Cortázar e as experiências de leitura dos livros de Bernardo Carvalho, Reprodução e O mundo Fora dos Eixos, bem como a apreciação das pinturas de Francis Bacon, Pablo Picasso e Paul Klee, o filme Blow up de Michelangelo Antonioni, os textos críticos de Cecilia Almeida Salles, Lucien Dällenbach, Ermelinda Ferreira, Maria do Carmo Nino e Florencia Garramunõ conjugado com o pensamento de Edgar Morin e tudo isso sendo atravessado por leituras trazidas pela memória, pelas experiências e vivências.       

Mas se na Cultura os mecanismos políticos e culturais e forças contrárias não favorecem a continuação do trabalho do artista e de sua arte e também da pesquisa e da crítica, é justamente aí que eles e elas devem residir com seu corpo em ação e a produção de sua arte e dispositivos críticos em constante dinamismo e movência. Uma arte e um artista e uma crítica todos movidos por novas referências conceituais, por inquietações cada vez mais dinâmicas e movimentos processuais ininterruptos no interior de uma força motriz carregada de pensamentos e interrogações.    

Referências:

ALMEIDA SALLES, Cecilia. Redes de Criação. SP: Editora Horizonte, 2006.

CARVALHO, Bernardo. Reprodução. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

______. O mundo Fora dos Eixos. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

CORTÁZAR, J.,Blow-up e outras histórias, tr. Mª M. F. Ferreira, Portugal, Publicações Europa-América, 1966.

DÄLLENBACH, Lucien. Intertexto e autotexto. In: DÄLLENBACH, L., El relato especular, Madrid, Visor, (1977) 1991

FERREIRA, Ermelinda. Banidos do Éden: Avalovara e o romance regionalista nordestino. In: Ensaios sobre Osman Lins. Brasília: UNB, 2013.

GARRAMUNÕ, Florencia. Frutos Estranhos. Coleção Entrecríticas. Org. Paloma Vidal. São Paulo: Rocco, 2014    

LINS, Osman. Avalorava. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

Blow-Up – Depois Daquele Beijo. Filme de Michelangelo Antonioni, 1966.

Imagens disponíveis e retiradas da internet em 08.06.2017:Francis Bacon.

Pablo Picasso. Guernica, 1937.  

Escrita e Pintura: Amalgamas. Material organizado pela professora Maria do Carmo Nino para a disciplina Literatura e Intersemiose

Conexões e silêncios

Ensaio

Marcos Torres

A experiência contemporânea nos apresenta grandes desafios, tanto do ponto de vista individual quanto nas relações coletivas, sociais, políticas e culturais. O mundo contemporâneo exige o cuidado de si e também dos outros a partir de nossas experiências passadas e presentes. Vivemos sendo constantemente desafiados a entender o mundo contemporâneo e suas turbulências sociais, culturais e políticas movidas por nossas diferenças e o fim das certezas e verdades que se queriam universais numa perspectiva atemporal e trans-histórica. Um desafio a vivermos neste mundo mediado cada vez mais pelas novas tecnologias que ao mesmo tempo reconfiguram nossa relação com as noções de espaço e tempo e nos impelem grandes desafios para aceitar o outro com todas as suas diferenças e idiossincrasias. Superar a ideia do Outro sempre como um problema, eis aí a nossa grande angústia e esforço dentro deste mundo em que vivemos.

O grande desafio talvez seja buscar uma maior compreensão para entender o mundo em constantes mudanças no qual o homem vive de forma fraturada, como um sujeito deslocado e em constante mutação, alguns momentos movido por relações voláteis e instáveis, diante de uma vida precária e múltipla, um ser imerso numa avalanche de eventos e conteúdos os quais desafiam suas percepções, ao mesmo tempo em que também solicita um olhar para as coisas miúdas, os signos, os silêncios, os desejos, as diferentes maneiras de apresentar e apreender o mundo, as experiências individuais e coletivas, o ainda acreditar em um mundo possível, nem que seja ao mesmo tempo sendo alimentado pelas luzes intermitentes dos vaga-lumes e pelos raios do sol do crepúsculo lá no horizonte com um céu parcialmente rosado e em meio a um enevoado mar de fuligem, misturado com todas as nossas contradições históricas, culturais e políticas advindas das mudanças tecnológicas e do capitalismo tardio, racismo, fascismo, escravidão e barbárie e as diferentes formas de violência e ações arbitrárias.

O exercício é entender que as águas não são tão tranquilas quanto parecem. O rio passa e fica, conserva e muda ao mesmo tempo, assim como o homem, os animais e a natureza. O rio, nessa água dura da palavra. Esse rio de águas turbulentas jamais será o mesmo no passar das horas e dos dias no nosso mundo contemporâneo. O clima no sentido amplo do termo é um fator importante para suas transformações e mudanças.

O objetivo deste ensaio é justamente alargar esta percepção dentro da literatura e arte contemporânea em meio a inúmeras questões que se colocam como desafios e urgências à nossa compreensão para suas provocações e proposições, com as oscilações entre a enchente e a vazante das marés numa ação constante, dobrável, sinuosa, variável, complexa e algumas vezes inapreensível e fugidia, na tentativa de abalar e colocar em xeque algumas estruturas, o status quo, a preservação dos feudos e das reservas de mercado, repensar o salto alto da ciência e da literatura que às vezes se pretendem inalteráveis, a arte, literatura e suas articulações e a sociedade do espetáculo muitas vezes movida pela banalidade, futilidade e descompromisso com a ética e a razão. Para Debord, “Toda vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de ‘espetáculos’.” Logo a seguir o próprio autor adverte para a situação de nossos dias: “Tudo que era vivido diretamente tornou-se uma representação (…) O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens.”

As conexões e seus dispositivos vieram para ficar de forma irreversível. Somos de alguma forma mediados pelos grandes sistemas de comunicação e mídias eletrônicas. Ou seja, Os meios de comunicação como extensões do homem, porque nosso corpo também é movido por terminações nervosas, impulsos elétricos e sinapses, onde as conexões em rede reconfiguraram profundamente nossa relação com o tempo e espaço, as fronteiras ficaram cada vez mais borradas e porosas e as distâncias já não são mais um problema para nossa comunicação para além do Atlântico e para nossas relações sociais e culturais numa esfera cada vez mais global. Tudo agora parece estar a um clique da mão, basta um celular, tablete ou notebook e as conexões em rede, tudo parece muito perto como numa comunidade, daí o conceito de aldeia global desenvolvido por Marshall McLuhan. O que vemos no contemporâneo são os movimentos corporais cada vez mais robotizados pelo ciberespaço e a mídia eletrônica, onde os corpos são contorcidos em ângulos de antigos vassalos e o Horizonte vai perdendo cada vez mais sua validade. Com isso, pouco observamos as folhas secas caindo da copa das árvores, os animais se movimentando no chão das florestas e os transeuntes passando do outro lado da rua. Nossas percepções vão ficando cada vez mais opacas.

Por outro lado, é importante estarmos atentos, pois não podemos deixar que os meios tecnológicos tirem nossa liberdade de viver outros mundos e experiências, nos conectar de fato com a vida real e em constante movimento, digamos, com a vida em sua instantaneidade, com os silêncios, vazios e inquietações de nossa alma, e nos momentos oportunos fazendo com que pensemos com profundidade, um outro tipo de conexão, portanto. As conexões eletrônicas não podem tirar nossa humanidade, nos sugar para algum abismo, tirar nosso tempo de contemplar a natureza, afinal, também precisamos dos silêncios, dos nossos sentimentos mais íntimos para nos encontrar com nosso ser mais profundo onde nenhum Outro jamais terá acesso, precisamos ver o mundo lá fora e ter mais tempo para ver a paisagem e apreciar o sol escondendo-se atrás dos rochedos.

No mundo contemporâneo, não há dúvidas, é certo, necessitamos dos meios de comunicações de uma forma ou de outra e das conectividades, sabemos, as conexões e interações são inevitáveis, mas também precisamos dos silêncios como disposições de signos. 

Então, como buscar um mundo possível para partilhar o sensível, uma política da literatura para escutar o outro dentro de sua complexidade contemporânea e exigência, uma democracia conforme vislumbrada por Jacques Rancière e Eric Hobsbawm, ao reverem as ideologias e conceitos de marxismo e comunismo e com isso nos ajudarem a pensar a complexidade do mundo contemporâneo em que vivemos nesta nova fase do capitalismo, globalização e terrorismo em meio a massificação das imagens e das relações voláteis. São algumas dessas indagações que guiarão este ensaio, sem a certeza de que encontrarão respostas para tais questões.

Começo a perceber certo desvio das diretrizes assentadas nas cátedras. Mas penso ser possível ter um interlocutor aberto para outros movimentos da linguagem. Queria tanto ser vizinhos dos cães raivosos que moravam ou talvez ainda morem no “quintal” da Sorbbone. A fim de ter maior liberdade, tão rara hoje em dia, para mobilizar e avançar com algumas inquietações para quem sabe vislumbrar um mundo possível. O desvio é sempre muito perigoso. Mas o perigo pode também estar assentado num constante estado de crise do sujeito contemporâneo que talvez busque um mundo possível e quixotesco sem a demissão de si.      

Um dos grandes desafios para a política da literatura no contemporâneo talvez seja buscar alternativas de respostas provisórias para questões urgentes como a movência dos padrões culturais contemporâneos que exigem novas posturas e percepções críticas, na esperança de alimentar uma força propulsora cujo real engendra tempo e espaço permeados por credos e crises jamais vistos outrora. O desafio da linguagem e do mundo contemporâneo está justamente no coração desta empreitada orientada pela razão, a sabedoria, a tradição e o novo, pela reinvenção de conceitos e ideologias políticas de igualdade, liberdade e principalmente fraternidade para construção e reconfiguração do real vivido e experienciado pelos múltiplos sujeitos na cultura. 

O mundo parece viver seu total desencanto como pecado que tenta obstruir um horizonte para apostar nas possibilidades de futuro. Uma demissão de si é um desastre para um futuro possível, principalmente quando ossificado por conceitos dogmáticos. O mundo contemporâneo é complexo, não nos resta dúvidas, em alguma medida o real também se complexificou a partir dos deslocamentos culturais e políticos. Daí a ideia de “como é difícil narrar uma vida” no espaço biográfico segundo François Dosse. Talvez essa seja uma das grandes assertivas para a política da literatura contemporânea, na perspectiva do ‘Eu e do Outro’. Como escrever uma vida?, interroga Dosse. Esta interrogação e ao mesmo tempo assertiva vai justamente de encontro ao discurso autoritário, de poder, daquela experiência que deve ser preservada de forma inquestionável e ao mesmo tempo ser seguida como algo já vivido e que deve ser preservado de forma imutável. Uma espécie de subordinação a fim de renunciar às interrogações, para com isso reproduzir as verdades como continuação e submissão e, assim, levando a um retrocesso e anacronismo no pior sentido dos termos. Algo inaceitável. Afinal, o contemporâneo é um rio que fica e passa, e a terceira margem é esse olho que nos impulsiona a enxergar as metamorfoses do contemporâneo.  

Às vezes é necessário dessacralizar as palavras para que elas possam seguir seu curso com suas ambivalências e antagonias, principalmente diante de um mundo contemporâneo em constante desconstrução da ordem da linguagem a fim de apresentar uma experiência existencial fragmentada, fraturada e dinâmica.

O homem contemporâneo parece ser um sujeito que se refaz constantemente por meio da linguagem entrecortada, e também talvez por meio de uma morte diária como conquista do presente e o cuidado de si para um desejo rudimentar sem se sujeitar aos dogmas religiosos e políticos.  O ser humano traz em si o poder de um corpo social. Embora a cultura em alguma medida busque um adestramento desse mesmo corpo. Nesse sentido, é importante ter sabedoria para um olhar crítico dentro dessas circunstâncias, e com isso buscar novas maneiras de cuidar de si após o jargão “penso, logo existo”, de René Descartes. Porque o pensamento não pode anteceder o ainda não vivido e experienciado por certa gramática e linguagem universal que nos constituem como sujeitos de linguagens.  O cuidado de si solicita instantes de vida como técnicas e saber de si. Um tipo de singularidade contra o poder regulador.   

Nossos corpos são movidos por necessidades como fazem os animais e seus instintos na natureza. Como um ser também movido pelo desassossego e dispersão. Somos frágeis e é daí que surge nossa riqueza de significação e complexidade em meio a sucessivos palimpsestos. Isto é, somos o outro enquanto o outro não é nós atravessados por intermináveis paradoxos.  E é justamente esse desejo que dá peso a realidade em que vivemos a partir do acolhimento ao outro em toda sua estranheza e idiossincrasia, de modo que isso faça com que a literatura busque na vida esta estranheza como forma de experiência sem reprodução das vivências e verdades teóricas produzidas pela ciência e cultura como parâmetros universais que não deixam margem para novas (re) interpretações do sujeito.

Às vezes é preciso fazer assepsias das palavras e dos conceitos para apresentar novas formas de interpretações e subjetividades, pois o homem contemporâneo já não alimenta tanto suas utopias e ilusões perdidas no desenrolar dos séculos em meio ao mundo da pós-verdade e do sujeito pós-humano. Como queria o mundo teológico e lógico como paradigmas para manter suas estruturas de poder e buscar manter-se num mesmo registro para seus pares. Hoje vemos que isso já não é mais possível diante da dúvida, do exame e da análise problematizados pela modernidade e sua complexidade histórica.    

O que entendemos sobre a percepção do tempo em meio a todo esse caos contemporâneo? Há aí uma questão que dificilmente terá uma resposta satisfatória para nossos anseios e inquietações pós-modernas. Mas pelo menos vale um pouco do nosso esforço para minimamente colocar na pauta dos nossos debates mais estreitos sobre a fragmentação do sujeito na pós-modernidade, porque a unidade do sujeito não passa de uma mera desfaçatez, ao estar em constante metamorfose onde nada parece evidente. Mas como fazer tudo isso sem ao menos nos dispormos de nossas próprias ações ou por nossas liberdades individuais e coletivas serem constantemente ameaçadas, quiçá, tiradas de nós, em alguma medida. Por outro lado, não há como dizer em palavras algo tão complexo como a percepção e a experiência do homem fragmentado, dentro de uma cultura contemporânea marcada por complexidades e mudanças tão profundas no seu modo de ser e de agir na sociedade e na cultura.

 O homem contemporâneo é um eterno paradoxo. Do mesmo modo em que suas dúvidas são tão caóticas quanto suas verdades e ambivalências. Montaigne escreveu que duas pessoas jamais fizeram um julgamento da mesma forma e da mesma maneira e ao mesmo tempo ele afirma a impossibilidade de duas opiniões idênticas, não só por dois indivíduos como também pela mesma pessoa em momentos distintos. Não é nenhum exagero dizer que essas incertezas é o que tem de mais atual nas vivências do homem contemporâneo e pós-moderno. Grande parte desses paradoxos e dessas diferenças está situada no coração da ciência e das artes, da literatura e não menos no interior da política, principalmente no que se refere às suas decisões e interpretações sobre a sociedade e a cultura numa forma mais abrangente do que essas palavras seriam capazes de traduzir, entendendo sua fragilidade e precariedade para a movência da linguagem e dos acontecimentos muitas vezes intempestivos. E pra quê essa mania de interpretar, indaga Montaigne. Por que não seguimos o caminho da tranquilidade, o mesmo sujeito provoca ainda mais. Tudo isso para justificar que “precisamos de menos juízes e advogados do que quando essa massa de leis ainda se achava na primeira infância”, o que não me parece de todo errado. Um sujeito sensato para um mundo contemporâneo mergulhado numa avalanche de insensatez e arrogância entranhada no espírito do nosso tempo. Montaigne pontua a volatilidade das palavras sendo mudadas ao sabor do vento e das circunstâncias por outras desconhecidas, palavras sendo resolvidas por palavras na eternidade de sua dinamicidade e circularidade, um pouco na contramão dos animais vivendo na natureza com seus instintos para manter suas sobrevivências, com sua linguagem corporal em constante ação e movimento. São diferentes formas de vida, portanto. E é importante buscar entender essas complexidades. Um exercício não muito prazeroso para os cômodos em sua inércia de sarcófagos. Para Montaigne, “saber que dissemos e fizemos uma tolice, pouca importância tem; o importante é saber que somos tolos.” Esse homem do século dezesseis é um sujeito abusado que fica chacoalhando o contemporâneo com uma verdade avassaladora. Voltando a assertiva, talvez aí resida um dos maiores desafios do homem contemporâneo: ter consciência de sua tolice, e acrescento ainda, da fragilidade do corpo, das limitações, das fraquezas, e da pobreza da experiência no termos de Giorgio Agamben (Editora UFMG, 2008).             

Em tom um tanto ácido e nem por isso menos verdadeiro, Aristarco, por meio das palavras de Montaigne, considerava que “nada é mais vergonhoso do que afirmar e decidir, antes de compreender e de saber”. (Ensaios, 2004, pág. 990). O velho Aristarco também dizia que “só se haviam encontrado outrora sete sábios no mundo inteiro, e que em sua época fora difícil descobrir sete ignorantes”. Diante da perspicácia do velho matemático e astrólogo interroga Montaigne: “não teríamos mais razão do que ele para dizê-lo de nosso século?” E hoje o que dizer do homem contemporâneo em sua precariedade e indigência? Não me arriscaria responder nem mesmo especular algo diante de tão complexa questão. E não sei se haveria alguém com coragem de especular, correndo com isso sérios riscos de se tornar uma pessoa desagradável. Talvez no correr das linhas lance, ainda que de forma precária, algum pensamento que aplaque minha falta. A linguagem diz sempre menos do que o profundo de nosso íntimo anseia externar. Somos seres de linguagem que jamais consegue dar conta de nossas profundas indagações. Se o velho de barba branca com cara de monge situado antes da Era Cristã tinha razão ao dizer que afirmar e decidir antes de compreender e de saber é uma vergonha, também é verdade que o mesmo Aristarco estava mergulhado num mar de contradições e incertezas, ao definir que a Terra girava em torno do Sol em seu movimento de rotação e determinar as distâncias entre a Lua e o Sol, entre outras questões matemáticas, trazendo ao rés do chão as complexidades do universo, o que não deixa de ser um sujeito corajoso, é verdade. Por outro lado, penso que o velho Aristarco seja um genuíno exemplo do homem contemporâneo entranhado de arrogâncias, limitações e pretensões miraculosas e talvez carregue em suas entranhas o que tem de mais importante hoje no mundo em que vivemos: O fim das certezas (Ilya Prigogine, 1996).  Ademais, o que posso fazer é sugerir a leitura dos Ensaios de Montaigne pulverizados por meio de traduções mundo afora, para quem sabe vislumbrar uma melhor compreensão e sabedoria, ainda assim sem muita garantia ou maiores pretensões.

Como pensar o homem contemporâneo com as inserções das novas tecnologias. Assim como nosso corpo é movido por sinapses e terminações nervosas ele também ouve, grita, sente e nos traz lembranças para nossa vida tão necessitada de recordações e pulsações. Do mesmo modo também são as bactérias, as algas, os cogumelos, as plantas e os animais, cada um à sua maneira, percebem o ambiente, sem essa troca de energia e de informações nenhum organismo sobreviveria (SERRES, 2003, pág. 192) e sequer apreciaria outras formas de vida em sua curta experiência existencial. Tudo isso faz parte de uma atual performatividade do homem, especialmente em nosso mundo contemporâneo, com uma avalanche de artefatos cada vez mais substituindo os corpos por novas ferramentas comunicacionais e dispositivos digitais possibilitados pelas mídias eletrônicas e em alguma medida o ciberespaço, sistemas abertos e software livre no coração de um capitalismo tardio.

Michel Serres tem razão ao pontuar a invenção da escrita e imprensa como duas grandes revoluções para as relações comunicacionais em nosso tempo. Nesse sentido, talvez resida aí o devir homem. Talvez não seja nenhum exagero dizer que aí reside a mutabilidade e falibilidade do homem tanto quanto as novas tecnologias e seus dispositivos. Há curtos-circuitos tanto na recepção quanto na disseminação de produtos e conteúdos, com excessos de imagens e ruídos, objetos obsoletos, posições e posturas críticas contraditórias, curtos-circuitos na apresentação dos pensamentos e ações, comportamentos, ética e razão. Tudo isso sendo pensado e considerado no espírito do nosso tempo entranhado no coração e pensamento do homem contemporâneo, na cultura, literatura e política, às vezes vivendo situado no entrelugar, movido pelos deslocamentos e rupturas, pela rejeição e em alguns momentos pela indiferença, por vezes carrega a sensação de ser um estrangeiro, não só ao estar longe do lugar que um dia chamou de pátria, mas também nas pequenas distâncias entre uma cadeira e outra numa sala de aula entre pesquisadores universitários e colegas de ofício.

Entrevejo certa necessidade de repensar as posições para o encontro com a alteridade e as diferenças, em meio a um mundo veloz com uma multiplicidade de subjetividades e olhares estilhaçados na cultura e na dinâmica espacial e temporal a partir de experiências existenciais entre os múltiplos sujeitos.

Estamos diante de um mundo em constante estado de perplexidade, com mudanças radicais entre um misto de razão e experiência no desenrolar da história. Michel Serres nos apresenta alguns exemplos dessas mudanças e transformações:  

Minha geração assistiu ao desastre: o aço, o carvão e os altos-fornos de outrora, sobre os quais meus pais acreditavam construir a Europa, logo fizeram parte da mesma perseguição feita aos moinhos de vento e aos teares do passado, enquanto o computador passou a multiplicar as impressoras e a fazer triunfar a antiga gravura de signos. Longe de eliminar seus precedentes, a invenção de um suporte os reaviva e os fez expandir-se. Teria valido mais a pena construir a Comunidade a partir do ensino! (SERRES, 2003, pág. 194)                               

Qual o sentido dessa expansão e mudanças radicais no interior das novas tecnologias se mal conseguimos capturar e colocar em ação suas precedentes? “Porque é preciso que estejamos preparados para grandes transformações”, conforme pontua Serres, ao mesmo tempo em que essas rupturas deveriam no mínino ser equivalentes aos dois grandes acontecimentos ocorridos no passado com as revoluções da escrita e da imprensa aqui já mencionadas linhas trás.

Essas mesmas perseguições e substituições também podem ser pensadas no cerne da sociedade francesa com a entrada de imigrantes africanos para a construção civil ao longo de várias décadas e até mesmo para formação da cultura francesa durante muitos séculos, mas o que está ocorrendo nos últimos anos com estes mesmos imigrantes e ou filhos de imigrantes é uma completa hostilidade tanto nos subúrbios de Paris quanto em outros bairros periféricos da França, como em tantos outros lugares, como nos Estados Unidos com os mexicanos e também os africanos vindos de diferentes lugares daquele continente. A França nasceu de um contexto de múltiplas culturas, é só assistir, entre outros eventos culturais, uma partida de futebol da liga francesa ou da seleção principal, e não será difícil perceber uma nação com um caldeirão multicultural e multiétnico, e não apenas com times constituídos de homens brancos com olhos azuis.       

A xenofobia, intolerância e racismo se espalham como ervas daninha pelos quatro cantos do mundo junto com a retirada de muitos direitos individuais e coletivos, como a postura de Marine Le Pen, na França, para exemplificar os novos modos de viver e fazer política; hoje a precariedade do trabalho e a mendicância são vistas mundo afora, onde operários trabalham e vivem em situações tão degradantes que a burguesia não colocaria nem os seus cães (perdão aos animais por tão estúpida comparação, eles não merecem isso!), como disse certa vez numa entrevista o antropólogo Ricardo Antunes, falando sobre o operariado e suas condições de vida e precariedade do trabalho; um mundo mergulhado em privação e abandono, com o desaparecimento e ou a divisão de países em comunidades do Leste Europeu, Ásia e África, as mesmas situações que ocorreram nas Américas séculos antes, e em grande parte da África, é verdade, de forma ininterrupta e sem data para terminar, enquanto as tecnologias 2.0 invadem todas as casas no mundo inteiro e simultaneamente, onde um número pequeno de pessoas conseguem dar conta de seus produtos e conteúdos que ficam obsoletos em poucas semanas ou meses, e poucos conseguem durar alguns anos em meio a sua defasagem, pane e choque anafilático por ruídos, como os homens.

A política da literatura tem um papel importante na construção desse debate, principalmente com a emergência de pontos de insurgência por meio de diferentes corpos-sujeitos deslocados e espalhados pelo globo em constante estado de diáspora. Ou seja, a própria experiência e vivência como molas propulsoras e força motriz para organização do pensamento e das ações, tão caros para nós no contemporâneo.

Presenciamos uma avalanche de contradições e equívocos no que se refere aos gastos públicos e às construções para a preservação de acervos e o acesso a bens culturais, como na construção da Grande Biblioteca nas margens do Rio Sena, conforme apontada por Michel Serres, ao mesmo tempo em que este crítica sua inutilidade e concretização absurda. Como tantas outras obras faraônicas feitas, ou obras históricas sendo destruídas pelos homens do poder enquanto desprezam a vontade do povo, a exemplo da tirania, ignorância e estupidez de um certo Stalin, ao mandar destruir um prédio histórico de mais de quatro séculos porque tapava a visão da Praça Vermelha ao se debruçar no parapeito da varanda de seus aposentos, um sujeito execrável, tanto quanto as mesmas bizarrices dos abomináveis marajás do século XVII, onde no mesmo movimento desprezavam a literatura, ciência, arte e história também alimentavam suas excentricidades, estupidez e ignorância.

Conexões e silêncios e seus paradoxos – “A concentração foi substituída pela distribuição” (SERRES, 2003, pág. 197). O pensamento parece ser cada vez mais substituído pelo acesso às novas tecnologias ao

dispormos de um terminal de computador portátil, de um telefone móvel e de todos os acessos possíveis aos bens e às pessoas, temos menos necessidades de constelações expressas. Para que anfiteatro, classes, reuniões e colóquios em lugares determinados, até mesmo para que uma sede social, uma vez que cursos e encontros podem ser realizados à distância? (idem)          

Concordo com as reflexões de Michel Serres, principalmente quando o filósofo aponta as novas configurações entre distância e sujeitos em lugares fisicamente não ou pouco localizáveis no que se referem a endereço de moradia ou de trabalho, porque os contatos e conexões entre as pessoas por meio de um celular ou computador portátil não designam mais de modo preciso suas localizações, um código ou um número, de acordo com Serres, já são suficientes. Para Heidegger isso leva a um questionamento para pensar a existência humana, um ser-aí, um amalgamento entre o Ser e o tempo para evocar o processo de constituição ontológica do homem, por vezes em vias de desaparecimento: aqui-faz.  

As tecnologias trouxeram em seu bojo grandes transformações, como bem colocou o arguto historiador Eric Hobsbawm, Essa revolução tecnológica teve conseqüências tanto políticas quanto culturais (1995, pág. 484). Assim como as reflexões de Michel Serres, Hobsbawm também traz posições críticas muito contundentes sobre as novas configurações de espaço e tempo com a inserção das novas tecnologias. Para o historiador, a tecnologia não apenas tornou as artes onipresentes, mas transformou a maneira como eram percebidas. A percepção da alta tecnologia em sua linearidade e sequencialidade tem pouca chance de ser percebida como antes era possível nos canais de televisão, especialmente com o advento da música eletrônica e do manuseio da fotografia em espaços digitais para congelar e repetir quantas vezes as pessoas quiserem, inclusive as crianças, e também com a entrada das textualidades no campo das artes visuais onde antes só se podiam reler trechos textuais tal como conhecemos na forma impressa e fixa no papel, quando a ilusão teatral, segundo Hobsbawm, não é nada em comparação com o que a tecnologia pode fazer em comerciais de televisão, inclusive contando uma história dramática em trinta segundos (1995, pág. 485), algo jamais visto em qualquer outra época. A crítica ácida que Hobsbawm faz sobre essas mudanças tem a ver com o que ele considera como um certo tipo de arte  e diversões populares em detrimento das “grandes artes”, digamos, as mais tradicionais dentro de sua ótica, o historiador avalia essa questão a partir de seus próprios critérios subjetivos e críticos, é compreensível, é importante pontuar. Mas não vejo mais como dicotomias e sim como uma instigante imbricação entre arte dita popular e arte considerada erudita, disposição onde me parece estar numa situação bem mais complexa no interior das culturas híbridas e na relação complexa entre leitores, expectadores e internautas, convocando aqui Nestor Garcia Canclini para esta conversa.            

Se por um lado, os expectadores e internautas parecem gozar de certa segurança onde antes temiam sua exposição aos ataques dos salteadores e longe das pessoas ditas agressivas, um lugar “onde todos navegam à vontade e sem nenhuma vigilância” ou aparente coerção, como um bosque que serve de refúgio aos proscritos, aos piratas e aos fora-da-lei. Por outro lado, a internet não parece ser este lugar de segurança e liberdade absoluta onde todos podem fazer e dizer o que quiserem por não estarem em lugares fisicamente localizáveis, o não-lugar.  A liberdade absoluta na internet não passa de uma ideia falsa. Não tenciono aqui falar daquela liberdade como querem os moralistas, mas afino-me com o conceito de liberdade nos termos de Isaiah Berlin, no mínimo as liberdade de religião, opinião, expressão e propriedade sendo garantidas contra invasões arbitrárias.     

A irrupção de novas tecnologias assinala um momento de hominescência, muda o conhecimento e, mais além, a reprodução (SERRES, 2003, pag. 206). Isso me fez lembrar do livro Reprodução de Bernardo Carvalho. Mas antes de seguir com minhas reflexões, não posso deixar de considerar que as contradições são também as maneiras pelas quais muitas identidades são constituídas. Também considero importante salientar que muitas identidades são constituídas no ambiente da internet e talvez aí seja o único lugar onde algumas dessas identidades conseguem ter voz e alimentar certa ideia de comunidade e rede social de comunicação, com trocas de imagens e ideias em meio aos diferentes intercâmbios sociais e culturais.

Bernardo Carvalho faz duras críticas à proliferação daquilo que vemos hoje na internet como um discurso cada vez mais racista, homofóbico, fascista e reacionário, por trás do discurso de uma falsa democracia, liberdade irrestrita e sensação de visibilidade absoluta.

Na entrevista, o autor diz nunca ter gostado de a literatura estar atrelada à política, mas, como afirma que o contexto atual pode ser caracterizado como o de um novo fascismo, Carvalho defende um livro mais político. Diante de um mundo confuso em que, segundo o autor, não sabemos direito onde mora o perigo, a justificativa para um livro mais político está na proliferação, principalmente pela internet, de um discurso dissimulado e carregado de fascismo, racismo, antissemitismo, anti-arabismo etc. No livro Reprodução, o estudante de chinês é a representação desse tipo de discurso que está estreitamente vinculado à internet, à sensação de visibilidade absoluta e à perda da privacidade, onde tudo é mostrado e nada é mostrado, tudo é dito e nada é dito e, portanto, um discurso contraditório. E, como está no próprio título do livro, tudo não passa de uma mera reprodução.  A internet, que, aparentemente, alardeia a liberdade e a democracia, desconstruindo hierarquias, propiciou, na verdade, o fim da democracia e com ela o fim da privacidade e da vida privada, propalando um sistema de controle absoluto, de pura publicidade.

Para essa construção identitária com as sensações de liberdade e visibilidade absoluta, Martín-Barbero escreve duras críticas sobre este assunto; para o filósofo espanhol radicado na Colômbia, essas sensações de liberdade e visibilidade absoluta na internet não passam de utopias, por trás de um discurso em que afirma que já não precisamos mais ser representados, pois a democracia é de todos e todos nós somos iguais. Trata-se de um falso discurso de igualdade e portanto uma mentira, diz Martín-Barbero . Pois, segundo o autor, nunca fomos nem seremos iguais e, portanto, essa sensação de democracia e igualdade total na internet é falsa. Martín-Barbero afirma que somos mediados pelas diferentes dimensões representativas da vida e da cultura e assim “precisamos de partidos políticos, associações de pais e escolas” e muitas outras comunidades sociais que nos representam de uma forma ou de outra. (Comunidades falsificadas, Folha de São Paulo, agosto de 2009, p.2).

É importante trazer o que especulamos aqui com o termo Comunidade no entendimento hoje e no mundo globalizado em que vivemos. Os processos de globalização muito contribuíram para essas novas configurações de sujeitos dentro de redes sociais de comunicação e suas subjetividades narrativas. Por globalização trago algumas reflexões de Canclini, quando este escreve apontando uma entre três diferenças para os processos de globalização, em especial no contexto do ciberespaço; uma dessas significativas diferenças, para Canclini, está atrelada a “interatividade na internet” a partir de um processo de “desterritorialização”.   (CANCLINI, 2008, p. 52). E talvez aí resida o perigo, com a facilidade que tem os internautas para a socialização de conteúdos “a partir de posições indefinidas, inclusive simuladas, inventando identidades” (2008, p. 52). Ao mesmo tempo em que essas interações e construções identitárias possibilitam importantes experiências intercambiáveis também disseminam discursos racistas e preconceituosos, muitas vezes a partir de uma postura acrítica, tudo isso talvez por uma sensação de liberdade e por não correr o risco de desmascaramento e denúncia de posturas muitas vezes agressivas, porque se trata de um ambiente que possibilita uma certa “desconexão social”, onde tudo parece permitido, com liberdade, longe dos olhos alheios, onde é preferível “ficar na frente da tela do que relacionar-se com interlocutores em lugares fisicamente localizados”.  (CANCLINI, 2008, p. 52)

Aqui fica claro o que Carvalho vem o tempo todo criticando, especialmente na entrevista concedida a Globonews Literatura. Ou seja, uma falsa ideia de democracia propagada na rede quando na verdade se propaga a proliferação de preconceitos que subvertem a própria ideia de democracia, inclusive com a defesa de uma ideia de democracia em troca de uma violência por meio de tortura e a promoção da perda e do fim da privacidade substituindo-a pelo combate a um suposto terrorismo, conforme expressa nas palavras do estudante de chinês, em trechos do livro Reprodução.

A ideia de que vivemos numa verdadeira democracia e liberdade absoluta é falsa. O mesmo é válido para dizer que somos livres para falar o que queremos e pensamos sobre os outros, mesmo não os conhecendo nem sabendo o mínimo sobre suas vidas. O fato é que não podemos tudo. Afinal, somos constantemente controlados, regulados e representados por instituições culturais, sociais e políticas, conforme afirma Martín-Barbero. Já Carvalho parece mais preocupado em criticar e questionar a concepção de democracia em que está sendo veiculada na internet, onde tudo parece permitido para se dizer qualquer coisa indistintamente em qualquer lugar, desconsiderando outras construções identitárias, outros sujeitos e suas subjetividades. Por fascismo Carvalho entende como aquele discurso onde tudo pode ser dito e mostrado, a qualquer hora e em qualquer lugar sem respeitar o direito e as opiniões alheias em nome de um discurso falsamente democrático.

Assim, de forma propositiva deixo aqui outras reflexões. Se é verdade que a internet proporcionou discursos fascistas e racistas por trás de uma falsa democracia, também é verdade que a internet é um dos espaços onde prolifera, mescla e acontece em grande medida o entrelaçamento entre o culto e o popular, em especial, como é o caso de nossa breve análise aqui, em redes sociais de comunicação como o Facebook e Twitter.  A outra coisa é que a internet trouxe grandes transformações para o nosso modo de pensar e agir diante do mundo e das relações sociais e culturais cada vez mais globalizadas e para as quais somos cada vez mais absorvidos; outro fato importante é o uso da internet para aperfeiçoar a apreensão do conhecimento através da busca por meio de hiperlinks e também as inúmeras estratégias de escrita que são utilizadas dentro das narrativas eletrônicas possibilitados pelos diversos sistemas digitais entre as diferentes redes comunicacionais.

Culturas híbridas podem ser entendidas como o entrelaçamento entre o culto e o popular sendo estes atravessados por diferentes sujeitos em diferentes instâncias discursivas e nos múltiplos processos de subjetivação, seja em redes sociais de comunicação, na literatura de um modo geral e em outras atividades artísticas e culturais no bojo da cultura, onde a linguagem cada vez mais aparece de forma “descontínua, acelerada e paródica” e com sua dicção, entre muitas outras, de teor político, como ocorre nos sons do hip-hop e do afrobeat, que embalam os grafiteiros e suas paredes multicores, nas colagens literárias em diversos suportes e formatos, nas múltiplas experiências artísticas entre poesia, música, quadrinho, artes plásticas e visuais contemporâneas, pintura e na literatura no sentido amplo do termo, entre tantas outras expressões e performances, para com sua “fecundidade” desestabilizar “ordens habituais e deixar que emerjam rupturas e justaposições”, e talvez para com isso, para Canclini, “culminar em um discurso interessado no saber e em outro tipo de organização dos dados”. (2008, p. 284)

Como utilizar-se do silêncio em meio a tudo isso. Para nos re-conectarmos com a vida e nos reaproximarmos dos valores mais profundos de nossos ancestrais. Eis aí grandes desafios. Será que nossas conexões falharam e nossos silêncios foram varridos. Ou tudo isso foi levado pelo rio que passa com sua água dura da palavra.

A terceira margem do rio pode ser entendida como outra temporalidade. As contingências são necessárias para o paradoxo do possível e impossível na quebra da narrativa das experiências e vivências, como na figura do pai a tornar-se outro em silêncio e palavras metamorfoses. Um silêncio duro cujas palavras estão situadas entre as margens escuras do rio e a clareira da luz madura de Rosa. O eterno paradoxo entre presença e ausência sob a risca da canoa onde na outra margem o filho busca Ser independente do pai e o silêncio entra como potência poética do dizer a voz das águas; e o rio engendra-se como travessia da vida e dos acontecimentos cuja palavra entra como mediação explosiva e parte do corpo no balé da canoa, da vida, onde há dentro uma peneira epistemológica como valores do sujeito nesta casa da palavra, onde o silêncio mora, a hora clara, na instabilidade como liberdade cujo silêncio é signo, palavra, diálogo, para além de sua imanência, quando não se diz nada / Fora da palavra, quando mais dentro aflora, rio, nosso pai… Que nada diz, mas o valor pode estar na possibilidade, o contar desatado, no silêncio, das águas, do rio, da margem, do sujeito…     

A política da literatura tem voz e silêncio ao mesmo tempo, em sua movência e desassossego, mesmo nos debatendo com grande parte de nossas utopias e ilusões perdidas. No exato oposto da política na literatura com seu discurso burocrático e moralista, com a convergência de ideologias e práticas para repetições de slogan, como numa missa em uma catedral, a formulações de diretrizes fixas para serem seguidas de modo ordinário e sistemático, aparentemente sem desvios de conduta, pelo menos na “teoria”, com “t” minúsculo!, atenção, embora com diretrizes cheias de entraves e feudos para reservas de mercado e manutenção de posições para seus pares no eterno vai-e-vem. A política da literatura segue em direção diametralmente oposta.

A política da literatura é dinâmica, movente, sugestiva, desce rio abaixo na correnteza do contemporâneo, é um rio que fica e passa ao mesmo tempo. A política da literatura nos oferece generosamente a possibilidade de um mundo possível, para o cuidado de si a fim de pesarmos a política do corpo na relação entre sujeito e os mecanismos de poder sobre si e sobre os outros. São análises e inquietações para questões que nos convocam constantemente a reflexões profundas no interior de proposições filosóficas, literárias e artísticas a partir de diálogos e certas percepções críticas. A esperança pode ser uma força propulsora que nos empurra para a possibilidade de encontrar alguma reposta para tais questões a fim de que pelo menos aplaque nossas angústias e faltas. Do mesmo modo em que é importante estarmos abertos para o confronto das ideias no sentido de debatermos sobre as universalidades dos credos em tempo de crise e insegurança dentro das flutuações da cultura e da política, sem jamais perdermos de vista o uso da razão, sabedoria e tradições e também do novo que nos constituem como sujeitos de linguagem, para a possibilidade de reinvenção do conceito de igualdade, liberdade e fraternidade tendo o texto literário como nosso maior aliado, a fim de pesarmos suas complexidades no mundo contemporâneo para apreensão, compreensão e construção de sentidos, isto é, a política da literatura como reserva de ressignificações sociais e culturais de modo que possamos vislumbrar um mundo possível, seguindo caminhos como andarilhos quixotescos, agradecidos à literatura como o fidalgo: Só vos digo que terei eternamente escrito na minha memória o serviço que me haveis feito, para vo-lo agradecer enquanto a vida me durar (CERVANTES, 2017, pág. 213).

*****

Como disse desde o início deste texto, eu não esperava ter garantia de que iria encontrar respostas para grande parte de minhas indagações, especialmente diante de questões tão complexas, mas, no fundo, todas essas questões e proposições não serão respondidas nem apreciadas devidamente por nós em nosso tempo neste mundo, se é que isto teria de fato algum fundo de pretensão, e sim por os que vierem depois de nós como escreveu Bertolt Brecht, em seu olhar com um misto de resignação e esperança… Uma esperança catalisadora nas vísceras de nossas incertezas…  

Aos que vierem depois de nós

I

Realmente, vivemos tempos sombrios!
A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas
denota insensibilidade. Aquele que ri
ainda não recebeu a terrível notícia
que está para chegar.

Que tempos são estes, em que
é quase um delito
falar de coisas inocentes.
Pois implica silenciar tantos horrores!
Esse que cruza tranqüilamente a rua
não poderá jamais ser encontrado
pelos amigos que precisam de ajuda?

É certo: ganho o meu pão ainda,
Mas acreditai-me: é pura casualidade.
Nada do que faço justifica
que eu possa comer até fartar-me.
Por enquanto as coisas me correm bem

(se a sorte me abandonar estou perdido).
E dizem-me: “Bebe, come! Alegra-te, pois tens o quê!”

Mas como posso comer e beber,
se ao faminto arrebato o que como,
se o copo de água falta ao sedento?
E todavia continuo comendo e bebendo.

Também gostaria de ser um sábio.
Os livros antigos nos falam da sabedoria:
é quedar-se afastado das lutas do mundo
e, sem temores,
deixar correr o breve tempo. Mas
evitar a violência,
retribuir o mal com o bem,
não satisfazer os desejos, antes esquecê-los
é o que chamam sabedoria.
E eu não posso fazê-lo. Realmente,
vivemos tempos sombrios.

II

Para as cidades vim em tempos de desordem,
quando reinava a fome.
Misturei-me aos homens em tempos turbulentos
e indignei-me com eles.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

Comi o meu pão em meio às batalhas.
Deitei-me para dormir entre os assassinos.
Do amor me ocupei descuidadamente
e não tive paciência com a Natureza.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

No meu tempo as ruas conduziam aos atoleiros.
A palavra traiu-me ante o verdugo.
Era muito pouco o que eu podia. Mas os governantes
Se sentiam, sem mim, mais seguros, — espero.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

As forças eram escassas. E a meta
achava-se muito distante.
Pude divisá-la claramente,
ainda quando parecia, para mim, inatingível.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

III

Vós, que surgireis da maré
em que perecemos,
lembrai-vos também,
quando falardes das nossas fraquezas,
lembrai-vos dos tempos sombrios
de que pudestes escapar.

Íamos, com efeito,
mudando mais freqüentemente de país
do que de sapatos,
através das lutas de classes,
desesperados,
quando havia só injustiça e nenhuma indignação.

E, contudo, sabemos
que também o ódio contra a baixeza
endurece a voz. Ah, os que quisemos
preparar terreno para a bondade

não pudemos ser bons.
Vós, porém, quando chegar o momento
em que o homem seja bom para o homem,
lembrai-vos de nós
com indulgência.

– Bertolt Brecht (Tradução Manuel Bandeira)

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Publicado: setembro 6, 2021 em Literatura e Outras Artes, Poesia
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