Arte inacabada e seus amálgamas
Ensaio
Marcos Torres
Antes de começar este texto propriamente dito preciso dizer que este ensaio terminará de forma inacabada. Tanto pelo seu próprio caráter ensaístico quanto pelos seus aparatos teóricos e objetos aqui analisados que também não deixam nenhuma margem de segurança para compreensão e apreensão total de seus conteúdos e objetos artísticos. Isso se deve pelo próprio processo de análise de projetos em constantes mudanças de perspectivas e suas relações amalgamadas tão difíceis de capturar sua totalidade. Tratarei aqui da análise de uma arte inacabada e seus amálgamas, uma arte em processo e em abismo, portanto.
Examinarei ainda que de forma precária alguns aspectos construtivos do romance Avalovara conjugado com alguns exemplos da arte contemporânea e seus amálgamas e inacabamento por meio de diferentes processualidades. Não há dúvidas de que a arte contemporânea está atravessada não só por relações dialógicas como também pelo amalgamento entre diferentes linguagens artísticas que convida o expectador a participar destas construções como campo de possibilidades para novas expressões textuais, visuais e performáticas a partir de parcerias artísticas e redes de criações colaborativas. A fim de apresentar possibilidades para novas maneiras de ver o mundo e suas potencialidades artísticas dentro da arte contemporânea e mais especificamente no entrelaçamento da literatura com outras artes, como será aqui brevemente especulado nesta exposição.
Há muito tempo que a caligrafia tem na letra parte de encadeamento e a beleza na apresentação do belo. As letras como ornamentações, cores e forma. Ainda hoje é justo e não é exagero dizer que Mallarmé é um dos paradigmas da arte e poesia contemporâneas. Com isso nos oferece a ideia de modernidade como progresso em meio a um tempo veloz cujo verso livre é o não-sentido linear, e, sim, o futurismo e o cubismo que trazem no primeiro a ideia de imagem em movimento enquanto no segundo traz o movimento do expectador ao entrar em contato com a imagem. Mas tudo isso já sofreu grandes transformações justamente diante de um mundo em constante movimento tanto no que se refere à arte quanto na constituição do sujeito na sua relação com o tempo e espaço e suas subjetividades, especialmente chacoalhando o academicismo da poesia que vigorou durante muito tempo nas Academias e nos versos dos poetas, rompendo essa barreira a fim de fazer pontes entre poesia e pintura.
Se o futurismo traz a ideia de movimento, o cubismo especialmente em sua terceira fase traz um ponto de insurgência voltado para a colagem trazendo pedaços de inserções da realidade para o processo de representação. O que vemos são imagens criando uma nova ordem, portanto, sob a luz da poética do fragmento e dos recortes e colagens. Sem de modo algum deixar de considerar a importância do expectador nessa construção.
Alguns aspectos são importantes dentro da narrativa em abismo, ou da mise en abyme nos termos de Lucien Dällenbach, uma possibilidade para entendermos melhor as processualidades artísticas e seus inacabamentos.
No filme Blow up a resolução de uma tragédia parece insolúvel para uma trama em abismo e fugidia sob a sombra de um cadáver sem causa-mortis definida e resoluções satisfatórias para decifrar seus enigmas de uma vez por todas a partir de suas generalidades. Para Dällenbach, “não podemos, contudo, ficar por estas generalidades, a pretexto de que este modo de intervenção se pode observar sempre e em todo lado”.
O filme Blow up nos apresenta bons exemplos para pensar o desenvolvimento da arte nos últimos anos. No filme de Antonioni com sua natureza fotográfica o menor detalhe sempre é pensado, cujos pedaços textuais se apresentam como possibilidades narrativas dentro de um jogo entre um plano social e um momento político. Ficções e política em constante diálogo, portanto. E talvez aí resida em Blow up uma chave narrativa dentro da diegese cinematográfica para compreensão de sua narratologia e dimensão funcional entre tempo e espaço, principalmente no que se refere a uma interpretação aberta como sugestão e não como definição, trazendo, portanto, a ideia de obra aberta nos termos de Umberto Eco. Blow up também parece trazer como sugestão e ilustração as diferenças entre o escritor e o artista visual, ao mesmo tempo em que apresenta os desafios entre o verbal e o não-verbal, com uma ligação e religação dos fios narrativos, em meio às relações de poder e dominação, tão em voga em nosso mundo contemporâneo, de modo que também podem ser vistas em Blow up na relação do fotógrafo com as postulantes a modelos para capa de revistas e campanhas de moda.
Talvez a película de Antonioni nos convoque para encarar a arte dentro de uma nova perspectiva, principalmente ao abrirmos mão do controle, da dominação e da técnica no modo repetitivo e mecanicista como os operários na fabricação de parafusos em Tempos Modernos. Nesse sentido, é importante estar aberto às novas possibilidades dentro do campo artístico e seu dinamismo e na ludicidade que o teatro de rua e da vida contemporânea pode nos proporcionar, a fim de compartilharmos as performatividades vividas e experienciadas no desenrolar dos acontecimentos cotidianos, individuais e coletivos por meio de redes de criação colaborativas.
Outros exemplos também podem ser encontrados no livro Avalovara, de Osman Lins, em sua busca pelos fios perdidos ou às vezes soltos e sem pontos de costura:
Estes fios no fundo da cisterna, presos nos cornos das trevas, vêm interferir, como um ruído importuno ou a vinda de estranhos, em meu trabalho secreto, a procura cega de uma indicação (o onde, o nome, o porquê) que aplaque em minhas veias o castigo de buscar. Enxergo mais do que pretendo e suporto. Por que, então, não vejo o que procuro? (2005, pág.69)
(…) “a ‘obra dentro da obra’ é, de novo aqui o que convida a interpretar o destino do protagonista como uma descida aos Infernos e uma transmutação salvadora. Mas faz mais ainda: como uma liturgia cósmica celebrada em pleno coração do texto, ela estende o seu poder de irradiação a todo o romance, que sacraliza e destemporaliza até fazer dele uma gesta situada in illo tempore. (Dällenbach, 1991, pág.53)
A processualidade da arte contemporânea também pode ser pensada por este prisma. Uma arte sendo frutos estranhos (cf. Florencia Garramunõ, 2014) como parte do cotidiano do artista sempre em busca de uma indicação que alimentem suas interrogações neste mundo de poucas respostas às suas indagações, em meio a pontos escuros e cegos, onde há mais proposições e sugestões do que respostas definidas e claras. Como a obra Guernica de Picasso, uma forma de revolta pelos horrores da guerra e tirania do General Francisco Franco, ao mesmo tempo em que esta mesma obra coloca em debate as atrocidades e barbárie ainda acontecendo em nossos dias. Uma obra aberta para novas possibilidades de interpretações.

O livro Avalovara é sem dúvida um texto que traz grande poder de radiação em sua construção narrativa, tanto do ponto de vista do enredo como também na apresentação estrutural ligada às artes plásticas e ao cinema.
Se passo horas na sombria umidade da cisterna e se lanço a rede até não poder mais, não é com apanhar algum dos poucos peixes aí prisioneiros: procuro fazer, deste ato ocioso e que executo mal, um eixo em torno de onde giram, nunca chegando a termo, minhas indagações sem cabeça. Só, sob a cobertura — estalam as folhas de zinco, nas noites mais quentes —, vou jogando a rede, colhendo-a e indagando. (Onde? O quê? Por quê?) De respostas, nem sinal. (2005, pág.69)
Neste fragmento de Avalovara, entre tantos outros, fica sugestivo seu caráter processual. A arte movida pelas indagações, o laborioso trabalho artístico nem sempre bem executado no sentido de seu inacabamento e imperfeições sempre em busca de uma melhor expressão em meio a sua processualidade temporal e espacial, ao mesmo tempo em que vai se fazendo e refazendo-se em meio a uma série de indagações, às vezes sem respostas ou sinal em algum momento, daí a ideia do inacabamento por meio de pontos de reflexão. “Não se pode ignorar, contudo,” conforme escreve Dällenbach, “que outros motivos, prescrevem a escolha de tais representações”. Para Dällenbach, a obra de arte traz em sua própria narrativa uma natureza polissêmica, com o objetivo de trazer com isso uma ação refletida dentro de certa temporalidade que anula ou pelo menos neutraliza o tempo da história. No mesmo movimento em que o tempo da narrativa é gasto por ela também “suspende o tempo narrado, poupa-se, assim, ao dever de refletir a sua reflexão, a reflexão de sua reflexão, e assim por diante”. (1991, pág. 68).
A arte contemporânea nos convoca para as parcerias artísticas e suas relações dialógicas, diluindo com isso a centralidade do poder e da autoria, para o atravessamento das diferentes expressões artísticas num processo de continuidade entre as diversas redes de criação.
“Procurar na vida o rumo é igual a buscar, num palheiro, a agulha que pode ter caído em outra parte.” (Lins, 2005, pág.111)
Pensar em criação como processo, já implica continuidade: um tempo continuo e permanente com rumos vagos. A criação é, sob esse ponto de vista, um projeto que está sempre em estado de construção, suprindo as necessidades e os desejos do artista, sempre em renovação. O sentimento de que aquilo que se procura não é nunca plenamente alcançado leva a uma busca constante que se prolonga, que dura. O tempo da criação está estreitamente relacionado, portanto, ao tempo da configuração do projeto poético. (ALMEIDA SALLES, 2006, pág.59)
Outros fatores importantes para pesarmos a arte contemporânea e sua processualidade têm como pontos de confluência a continuidade, sem muita precisão de seu início e fim, conforme Almeida Salles, e a ideia de amálgama a partir das diferentes parcerias artísticas entre os diferentes campos de atuação dos artistas envolvidos em redes de criação, levando com isso o espraiamento e algumas vezes a dissolução da autoria.
Trata-se de uma busca constante por um modo de expressão e possibilidades dialógicas sempre em processo de construção movido por diferentes interpretações tanto dos artistas como também do engajamento do expectador leitor nessa construção, embora seja importante salientar que tudo isso se dá a partir de uma busca constante e às vezes prolongada, no sentido de considerar um projeto poético como uma obra aberta a novas possibilidades de interpretação e apreensão no interior de sua própria processualidade movida por uma força dinâmica dentro da arte contemporânea e seus amálgamas.
A continuidade nos leva ainda a observar que nunca se sabe com precisão onde o processo se inicia e finda. É sempre vã a tentativa de determinar a origem de uma obra e seu ponto final. Sob a perspectiva das inferências, redes de interações, observamos uma diversidade de conexões que parece propiciar uma obra e, do mesmo modo, diferentes desdobramentos de uma obra entregue ao público. A progressão potencialmente infinita pode ser percebida nas modificações que dão origem a outra edição, outra apresentação, outra exposição ou montagem. Podemos também encontrar temas sendo revisto, personagens reaproveitado etc. Pode-se falar que o artista mostra publicamente sua obra em instantes em que o “ponto final” é suportável. Temos assim uma definição mais aprofundada do movimento da criação, que nos leva a falar de sua continuidade sem demarcações de origens e fins absolutos. (ALMEIDA SALLES, 2006, pág.59)
Talvez aqui nesta citação acima estejam os maiores investimentos do escritor Osmar Lins na construção de sua vasta Obra, em especial no projeto de criação do livro Avalovara. Em Osman Lins há claramente um processo de continuidade no que se refere à construção de uma narrativa autoral, com a sequência na escrita de diversos livros em diferentes gêneros textuais sendo ao mesmo tempo apropriados e adaptados para a televisão, o teatro e o cinema. A busca constante por um certo modo de expressão e assinatura autoral, muitas vezes carregando a angústia ao colocar um ponto final suportável.
Essa reversibilidade ou retroatividade gera um tempo feito de idas e vindas, fluxos e pausas, que envolve julgamento retrospectivo. Nesses momentos, o futuro revisa e redefine o passado. Neste contexto, é preferível falar da experimentação como movimento e não como evolução: não há segurança de que a obra em construção esteja caminhando de uma forma pior para outra melhor. A melhora não é uma certeza. No vai-e-vem da busca do artista, assistimos a muitas recuperações de forma que foram, em outro momento, negadas ou rejeitadas. Vale lembrar que aqui reside um dos motivos pelos quais o artista preserva formas anteriores: sabe que suas escolhas podem ser refeitas. (ALMEIDA SALLES, 2006, pág.62)
A retroatividade me parece ser a grande mobilizadora para o que está sendo produzido na arte contemporânea e sua processualidade. Considero importante o que escreve Cecilia Almeida Salles ao pontuar a ideia de idas e vindas, fluxos e pausas, como também podem ser vistos na espiral e no quadrado mágico de Avalorava, onde parecem ser marcas vívidas nas expressões artísticas atuais. Do mesmo modo em que essas expressões artísticas colocam em jogo o embaralhamento entre passado e futuro sem a ideia hierarquizante de melhor e pior como um conceito evolutivo, onde também são deixados de lado ou pelo menos tratados de forma colateral no que se referem às suas dicotomias e estereotipias.

Se em Avalovara há uma constante procura por um rosto (ainda) indefinido como em algumas pinturas de Francis Bacon, como a própria busca do artista contemporâneo por um certo modo de expressão, há também um engajamento e comprometimento pelas questões político-sociais e culturais na construção de sua poética. Engajamento e comprometimento que também podem ser vistos num outro escritor contemporâneo como Bernardo Carvalho, por exemplo, que nos últimos anos seus romances publicados se devem ao fato de ter observado a necessidade de escrever livros, de acordo com o autor, mais políticos, em busca de uma nova perspectiva temática, assinatura autoral e projeto poético, como parecem estar sugerido por Osman Lins em O pássaro Transparente, A rainha dos Cárceres da Grécia e Avalovara, por exemplo.
Uma poética que se deseja política na enfática defesa de um lugar para a literatura no mundo, em geral; e de um lugar para uma literatura nordestina emancipada da miséria, em particular. Um lugar para a voz poética, que não é menos política do que as vozes filosófica, sociológica, científica e religiosa, embora tenda a ser quase sempre menos dogmática. E um lugar para a voz nordestina, que possa falar de outros assuntos além da seca e da pobreza, do retirante e do cangaço, sem ser acusada de “alienada” e “alienante”. É a essa tendência ao não-dogmatismo do discurso poético que a literatura osmaniana se apega, quando reflete, no encontro do protagonista com a mulher sem nome – um nordestino e a outra paulista – à fusão das duas “pátrias” do regionalismo nordestino: a que fala do “mesmo” como um eterno-retorno, na circularidade do destino traçado na adversidade de uma região aparentemente desfavorecida pelo clima (e seguramente pela má-vontade de seus governantes); e a que continua a falar do “mesmo” na linha de fuga historicamente buscada pelo emigrante no sul do país, onde se depara sobretudo com o preconceito, o desemprego ou o sub-emprego e a marginalidade. (FERREIRA, 2013, pág. 8)
Destaco aqui também a interatividade de gestos do artista, como os registros em seus documentos, com uma reativação pelo olhar do crítico para sua fortuna crítica, na leitura de Almeida Salles (2006, pág. 32). Para Almeida Salles, “a interatividade ao longo da criação artística é observada em âmbitos diversos”, tal como no processo de comunicação na interação entre artista e expectador e o convite à sua participação principalmente nas artes performáticas e dinâmicas visuais no interior dos espaços interativos onde os corpos são constantemente convocados. Porque “não se pode deixar de levar em consideração”, segundo Almeida Salles, “as interações entre indivíduos como um dos motores do desenvolvimento do pensamento: conversas com amigos, aulas com mestres respeitados”, como, por exemplo, as aulas de Intersemiose na pós-graduação em letras ministradas pela professora Maria do Carmo Nino, “ou opiniões de leitores ou espectadores particulares.” (idem).
Há nas redes de criação um vasto material de pesquisa do artista como, por exemplo, os diários, as anotações, os esboços, os rascunhos, as maquetes, os projetos, os roteiros, os copiões, etc. Tudo isso sugere o que podemos inferir dentro de todo esse escopo: a identificação de um pensamento em construção e ou a visualização de uma obra em processo.
Coloco aqui o que quero chamar de projeto poético nas palavras de Ermelinda Ferreira ao se debruçar sobre a obra osmaniana e nos termos de Cecilia Almeida Salles em redes de criação e arte em processo. Porque vejo aí nessas reflexões uma forte exigência para a formulação de novos paradigmas conceituais, tanto do ponto de vista de uma abordagem crítica como também da solicitação de leitura e apreensão de seus conteúdos e proposições artísticas pelo expectador leitor.
O que há de fato sendo apresentado nessas últimas décadas é uma arte que propõe certa complexidade em sua apreensão e leitura crítica, não uma complexidade no sentido de algo difícil e hermético, mas a simplicidade de uma arte complexa no sentido do uso de materiais artesanais conjugado com os novos dispositivos digitais e seus artefatos, trazendo com isso uma maior dinamicidade e ludicidade na apresentação de seus conteúdos. Uma arte que traz novas composições artísticas, principalmente a partir da segunda metade do século XX, com novas abordagens conceituais dentro das concepções futuristas, cubistas, concretistas e principalmente surrealistas na arte contemporânea e seu dinamismo em espaço e tempo lúdicos.
O percurso do criador é longo e sinuoso. Porque mobiliza uma transformação muitas vezes radical no modo de conceber suas propostas artísticas por meio de um movimento introdutório e um conhecimento razoável sobre suas atividades cotidianas para a construção de verdades artísticas com percursos algumas vezes experimentais. Trata-se de uma percepção importante porque possibilita redes de criação e conexões com outros artistas para juntos se relacionarem com seu entorno, buscando com isso certa dissolução das hierarquias, porque há nessas relações de parcerias artísticas uma simultaneidade de ações que seguem um percurso não-linear e apontam para novas conexões que reforçam as conectividades.
Por outro lado, são redes de criação marcadas por um dinamismo, flexibilidade, mobilidade e plasticidade onde a criação está em constante ação, movida pelos deslocamentos e pelas diferentes possibilidades de uma obra se apresentar num momento e em outro na criação do artista ao longo do processo e daí a ideia de inacabamento de uma obra em constante mudança e reaparições. A estética do esboço, rascunho e anotações como mencionada linhas atrás. Porque é importante salientar que o artista sempre se alimenta das incertezas, mutabilidade, imprecisão e inacabamento.
As redes de criação são constituídas a partir de contatos e alianças para o plano das inventividades dentro de certas regras de funcionamento. Ao contrário das tendências fixas as redes de criação se expandem e ao mesmo tempo se modificam em sua estética processual num emaranhado de relações de dados, documentos e obras, para talvez com isso gerar novas ideias e possibilidades para novos modos de expressão, com muitas ações ao mesmo tempo e em completo dinamismo: mudar, alterar, modificar, transfigurar e converter em meio à natureza de seus elementos onde as autorias se constituem a partir das formulações de novas ideias e hipóteses, num processo de continuidades e algumas vezes entregues ao acaso, com vestígios do mundo que envolve o artista: as memórias pessoais, seus álbuns de fotografias e coleções de livros, agendas e diários, a ativação da memória da infância e sua ludicidade às quais se misturam entre passado e presente para as construções de imagens e objetos artísticos em movimento e constante interatividade na dinâmica de seus conteúdos e formas.
Não importa onde os artistas estão, se perambulando em ruas da cidade como flâneures ou sentados em seus escritórios de trabalho ou ateliers. O importante é que eles e elas estejam numa efervescência cultural seja lá onde estiverem; abertos ao crescimento do pensamento por meio de relações dialógicas para o intercâmbio de ideias. “As inovações do pensamento”, segundo Almeida Salles, “só podem ser introduzidas por este calor cultural” com a convivência em sua “pluralidade de pontos de vista”:
A dialógica cultural favorece o calor cultural que, por sua vez, a propicia. Há uma relação recíproca de causa e efeito entre o enfraquecimento do imprinting (normalizações), a atividade dialógica e a possibilidade de expressão de desvios, que são os modos de evolução inovadora, reconhecidos e saudados como originalidades. (2006, pág.39).
Na macroestrutura da cultura é importante as interações como motores para conexões e encontros a fim de fomentar pesquisas para obras abertas e em construção. Os ambientes culturais parecem ser muito propícios para trocas e diálogos em meio às interlocuções para o confronto de ideias. Os gestos inacabados podem ser pensados como tessituras para a promoção de associações e resgates de “fatos ocorridos, pessoas esquecidas, cenas guardadas, filmes assistidos”, momentos de discussões em salas de aula, conversas com parceiros de trabalho e outras parcerias artísticas em meio a afinidades eletivas e discussões de ideias para possibilidades de novas interpretações.
Na minha condição de pesquisador no campo da teoria literária e suas articulações com outras artes o que posso dizer a partir de minha própria experiência tanto na minha função de investigador como também na minha performance autoral no campo da arte, é que há em ambas um campo fértil para a formulação de novos paradigmas conceituais e um amplo leque de possibilidades para parcerias artísticas e amálgamas dentro de uma arte cada vez mais processual e aberta a novas interatividades para construções de conectividades textuais, visuais e performances contemporâneas na frequência de seu dinamismo e ludicidade.
Para a formação desses amálgamas as colagens possibilitadas pelo cubismo foram importantes dentro dessas novas emergências estéticas na arte contemporânea, com maior preponderância na segunda metade do século XX onde a arte não reproduz o visível, torna visível. As letras se movem, se sobrepõem, com movimentos contínuos e instáveis, se desintegrando em seu próprio abismo em movimento. Como nas artes plásticas as palavras seguem numa outra dinâmica diferente da fixidez do papel. Palavras em espaços interativos e dinâmicos saindo de sua inércia para movimentos e diálogos com o expectador leitor. Em vez da concepção em grande medida linear das páginas do livro as palavras tomam corpo em quadros em círculos, triângulos, com uma infinidade de cor, linha, volume, densidade, espaço e luz, para reflexões dos sujeitos na interação. Tudo em movimento, como no Cinema e na Arte em Quadrinho, nas Instalações Artísticas e suas dimensões variáveis e projetos conceituais.
A articulação entre Literatura e Intersemiose é um campo vasto que deve ser melhor explorado nas próximas décadas. Todavia, se faz necessário e urgente uma radical reformulação no que tange aos programas interdisciplinares dentro das universidades brasileiras para a criação de novos programas de pesquisas e novos conteúdos disciplinares. Há uma barreira difícil de ser rompida mas ao mesmo tempo bons caminhos e novos horizontes embora impossibilitados de seguirem adiante pelos entraves e reacionarismo das ideologias radicais e grades inflexíveis impedindo a criação de novos programas e conteúdos, campo de pesquisa e fomento, redes colaborativas tal como nas artes literárias e visuais contemporâneas que nos convocam a pensar sobre seus paradigmas conceituais e suas criações artísticas em sua constante processualidade e inacabamento.
Não apenas o esboço, rascunho, diário, maquete, mas também os encontros, seminários, congressos e colóquios, os debates e discussões, as afinidades eletivas e também as divergências, para o encontro com a alteridade, para possibilidades de reformular posturas críticas e usufruir de novos saberes são igualmente importantes para o fomento a criação de novos conteúdos textuais e visuais e também para a formulação de novos aparatos críticos. Esse escopo de temas, proposições e indagações, dinamismo e movimento fazem parte da própria ideia de processualidade dentro do campo artístico, crítico e cultural. Como foram os exemplos aqui brevemente apresentados, tanto de obras artísticas quanto de textos críticos, como os fragmentos do livro Avalovara de Osman Lins, J. Cortázar e as experiências de leitura dos livros de Bernardo Carvalho, Reprodução e O mundo Fora dos Eixos, bem como a apreciação das pinturas de Francis Bacon, Pablo Picasso e Paul Klee, o filme Blow up de Michelangelo Antonioni, os textos críticos de Cecilia Almeida Salles, Lucien Dällenbach, Ermelinda Ferreira, Maria do Carmo Nino e Florencia Garramunõ conjugado com o pensamento de Edgar Morin e tudo isso sendo atravessado por leituras trazidas pela memória, pelas experiências e vivências.
Mas se na Cultura os mecanismos políticos e culturais e forças contrárias não favorecem a continuação do trabalho do artista e de sua arte e também da pesquisa e da crítica, é justamente aí que eles e elas devem residir com seu corpo em ação e a produção de sua arte e dispositivos críticos em constante dinamismo e movência. Uma arte e um artista e uma crítica todos movidos por novas referências conceituais, por inquietações cada vez mais dinâmicas e movimentos processuais ininterruptos no interior de uma força motriz carregada de pensamentos e interrogações.
Referências:
ALMEIDA SALLES, Cecilia. Redes de Criação. SP: Editora Horizonte, 2006.
CARVALHO, Bernardo. Reprodução. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
______. O mundo Fora dos Eixos. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
CORTÁZAR, J.,Blow-up e outras histórias, tr. Mª M. F. Ferreira, Portugal, Publicações Europa-América, 1966.
DÄLLENBACH, Lucien. Intertexto e autotexto. In: DÄLLENBACH, L., El relato especular, Madrid, Visor, (1977) 1991
FERREIRA, Ermelinda. Banidos do Éden: Avalovara e o romance regionalista nordestino. In: Ensaios sobre Osman Lins. Brasília: UNB, 2013.
GARRAMUNÕ, Florencia. Frutos Estranhos. Coleção Entrecríticas. Org. Paloma Vidal. São Paulo: Rocco, 2014
LINS, Osman. Avalorava. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
Blow-Up – Depois Daquele Beijo. Filme de Michelangelo Antonioni, 1966.
Imagens disponíveis e retiradas da internet em 08.06.2017:Francis Bacon.
Pablo Picasso. Guernica, 1937.
Escrita e Pintura: Amalgamas. Material organizado pela professora Maria do Carmo Nino para a disciplina Literatura e Intersemiose