O nômade metropolitano

Salvador, Bahia, 11 de setembro de 2011.

O Nômade Metropolitano

Ele nasce com as iniciais MTS, tem nome, sobrenome e certidão de nascimento. Nasceu às treze horas e quarenta minutos do dia 19 de agosto de 1973 na cidade de Feira de Santana, na Bahia, Brasil. A certidão foi lavrada no cartório oficial de registro civil do primeiro ofício de número A-149 às folhas 211 verso, consta no termo número 115129. Apenas para lembrar que este registro foi feito no dia dez de abril de mil novecentos e setenta e cinco, (Lei número 6. 015/73 – artigo 46, parágrafo 2º), portanto, quase dois anos após o nascimento. Esta é a parte da mentira. A verdade conto depois logo em seguida.

É uma cidade movimentada como aquelas habitadas por esquimós. Lá fora os transeuntes vão passando pela rua sob um barulho insuportável, mas do outro lado o silêncio é mortal. O frio é intenso e a cabana fica numa avenida onde passam nômades como ele, o nômade metropolitano. A geografia oferece uma visão perturbadora para aqueles que não estão acostumados com barulhos e inquietações. As botas estão encharcadas de lama até a altura do joelho e lá fora o gelo é intenso.
Não há peixe nos buracos de gelo ou abaixo das camadas finas dos icebergues; nas prateleiras não há peixe, pois estão vazias com a chegada da escassez. Os rios estão poluídos com dejetos deixados por transeuntes quando comiam a última sardinha. Onde ele mora não há prédios nem grandes construções, somente ocas nas zonas periféricas das planícies.
Os nômades vivem nas marquises geladas entre os morros. Para procurar alimentos é preciso muito esforço, às vezes um trabalho cansativo e enfadonho, mas não há outro jeito de encontrar alimentos mesmo diante de tanta frieza e crueldade, lá fora. Talvez os lobos selvagens estejam à espreita; o bote pode ser mortal. Eles são tão selvagens quanto os animais de outras espécies. O nômade é quase um moribundo.
A terra onde pisa tem cheiro de enxofre como as máquinas mortais destilando ‘animais’ nas valas. Ele parece cansado num lugar quase insuportável e com tanto frio doendo nas entranhas. Anda por estradas empoeiradas. No caminho só há estátuas petrificadas pela estupidez do tempo, dos homens. E, ao longe, uma criança dormindo no casco de um barco abandonado como uma lata no mar à deriva. É difícil não ver episódio como este diante de um tempo tão nebuloso. Embora as pessoas não enxergem nada a um palmo de distância. Tudo parece escuro e gelado.
O frio já tomou conta do ambiente e talvez dure ainda algumas estações. As roupas são acolchoadas como pele de carneiro ou urso do lado norte. Mas a cabana não tem teto nem isolamento. O perigo gira em toda parte como nas cidades civilizadas. Até ontem havia comida nas panelas feitas de restos de metais e barro branco. Encontrar comida por aqui é quase como procurar uma suíte na Groenlândia. Outro dia veio um esquimó por essas bandas. Ficou tão espantando com a situação que foi embora no dia seguinte. Não aguentou tanta crueldade.
Ele passeia pelo deserto da metrópole buscando algum sentido para tamanha solidão. É um ambiente tão hostil como aqueles das cavernas escuras e toscas. Na há palavras. Todo mundo se comunica por pequenos gestos, mas é difícil entender o que estão dizendo. Quase não usam as pernas para fazer qualquer coisa. Ociosidade. O frio lá fora é tão grande que é melhor se agasalhar e ficar vagando entre cabanas e esconderijos temporários.
Acho que agora ele vai se deslocar para o outro lado da zona gelada, fria e inabitada. Às vezes passam nômades como sonâmbulos e vão embora sem destino; nunca sabem onde estão ou para onde vão. Seguem qualquer caminho como moribundos. Ele vai para uma zona temperada. Mas lá o alimento também está escasso. A tempestade destrói tudo que encontra pelo caminho com a ajuda de alguns transeuntes e forasteiros que não cuidam do canteiro na margem do rio. O gelo está derretendo e o calor parece vir com justificativa.
As aves que passavam por essas bandas nunca mais voltaram. Migraram para outros horizontes onde os nômades não encontraram suas pegadas nem a bússola que estava no céu quase escuro.
O nômade trabalha com algumas estacas encontradas pelo caminho deixadas pela tempestade. O tempo muda de acordo com o movimento da terra, lá embaixo.
Ele quase não sai da toca; e quando isso acontece o mundo gira no exato oposto. A comunicação lá em baixo está truncada e os nômades quase não se entendem, mesmo vivendo no mesmo espaço e gozando da mesma terra inabitada. Os pedaços de gelo estão por toda a parte. Os nômades nunca sentem frio, mas estão sempre procurando algum cobertor perdido nas cabanas ou nos iglus. Às vezes cria-se certa confusão por um pedaço de pano limpo ou mesmo alguns restos de tecidos deixados nas ruas geladas e desérticas. Todo mundo quer um cobertor para se aquecer. Mas num lugar inóspito não há abundância em toda parte. As zonas mais desprezadas sofrem mais pela escassez. Isto sempre acontece.
O mundo não é um paraíso e as normas são sempre muito rígidas, mas há sempre alguém contrariando e sendo tragados por alguma avalanche. O tempo nunca manda um recado de véspera. Tudo acontece num piscar de olhos. Mas os nômades nunca se preocupam em tapar a soleira da porta. Como não vão ficar por muito tempo então deixam tudo acontecer ao sabor do destino como numa loteria; o preço é sempre muito alto e quando se dão conta tudo já está no limite do abismo.
Parece estar na época do salmão. As varas de pesca estão guardadas para esta ocasião. A disputa é muito grande e todos querem o melhor pedaço. O tempo é marcado numa ampulheta como nos melhores dias, mas as horas são iguais para todos como nos piores tempos de escassez. Cada um tem um tempo para pesca, embora alguns teimem em fraudar o acordo. Nem sempre há carne fresca a todo instante, menos para os abutres nas zonas secas e áridas onde a fartura está exposta.
Há escassez de tudo, desde os sorrisos mais melancólicos até os gestos mais triviais. Os animais são pisoteados nas florestas, como gente perambulando nas avenidas.
Os sabores que são encontrados na terra fria são amargos como o fel. Os zunidos das cigarras são mais prazerosos e menos incômodos do que as vozes inaudíveis nas ruas e galerias.
O nômade subia uma escada íngreme com as bordas coberta de gelo; a frieza era denunciada pelo limo esverdeado correndo nas paredes como sangue correndo pelas valas. No interior as paredes eram escuras e o céu era o teto, apenas uma lona preta para livrar do excesso de neblina e das camadas de gelo caindo e correndo pelos corredores. Uma criança nômade sentada num batente frio junto aos animais catando restos de comidas no terreno gelado com pedaços de gelo e lixo espalhados por toda parte.
Uma nômade passava com sacos furados cheios de migalhas vendidas nas lojas de reciclagem e do outro lado uma madame dirigindo uma carroça fabricada num boteco asiático importada para vender nos iglus das terras submissas.
Nômades trancafiados em guetos submundos e o gelo derretendo nas paredes enquanto lá fora a frieza aumenta no mesmo compasso da frieza ali dentro e diante disso o nômade viajante observa em silêncio, parado do outro lado da calçada.
Na soleira da porta pedaços de gelo e homens vestido de pele de urso polar e do outro lado num bloco de neve mulheres e crianças subindo procurando uma choupana fugindo do frio e da neblina e das avalanches de gelo. Os homens vestidos de pele de urso polar escondem a indiferença como esgoto correndo em tubos submersos.
Nas planícies geladas nômades trajando panos costurados com etiquetas e outros dormem nas montanhas de gelo com um cobertor de papelão sem roupas ou etiquetas. Os nômades deixam pegadas na neve e os cachorros selvagens sedentos carregam as mobílias dos transeuntes.
O nômade metropolitano encontra uma família descansando num bloco de neve, o cansaço parece dominá-los e o frio é tão intenso que parece tomar conta da paisagem. Ele vai ficar por algum tempo junto com a família de nômades e depois segue para outras planícies. Não há novas alternativas; tudo é muito frio e gelado em toda parte, não tem como fugir dessa tremenda frieza.
Na margem do rio congelado um pequeno córrego de água limpa e pedaços de madeira para acender uma fogueira. A madeira nessas zonas úmidas e frias é como ouro guardado em cofres escuros. O acesso é para poucos como de costume e as disputas são as mesmas por um pedaço de madeira quando o frio já está no limite do suportável e o corpo no limite da vida. Tudo é limitado e escasso, como em outras ocasiões.
Fizeram uma cabana de taipa embaixo de uma figueira no meio da terra inundada de gelo e fria. Outras cabanas estão do outro lado. A comunicação é quase nenhuma. Todos estão acomodados com suas preocupações e proteção contra as avalanches de gelo e os lobos selvagens que passam a todo instante. Qualquer descuido o golpe pode ser mortal, como nas guerras em lugares submissos e morros nas zonas periféricas, todos disputando certa hegemonia por um pedaço de carne ou de pano.
Às vezes ele rema no sentido oposto. Dorme durante todo o dia e fica acordado durante a noite. Com isso evita qualquer contato com alguma formiga ou animais de outras espécies. Se a frieza estar em toda parte então não importa a hora do dia ou da noite para sonhar com outras paisagens. Aqui nessas planícies geladas o tempo é sempre nebuloso. Não se encontra sequer um cobertor de papelão no meio da relva. Tudo está mudado e a escassez pode se perpetuar, nas zonas frias do globo, isto é, em toda a parte ou quase total. Os nômades estão buscando outras zonas mais temperadas, mas o gelo está em toda parte. Até os assoalhos das cabanas ficaram cobertos de gelo trazidos pelas tempestades. Tudo parece derretido pela estupidez do tempo, dos homens. O desastre é intenso e ainda pode durar algumas estações. Nada está seguro.
Ao longo do caminho um hospital oferece um serviço precário; no chão, camas forradas com pedaços de estacas e nas prateleiras não há remédios nem cobertores para todos. A falta é geral e os médicos sofrem pela frieza das circunstâncias. Tudo é mórbido e sombrio ou mesmo lúgubre, como em algumas cabanas do outro lado do mapa.
A criança de menos idade pede a mãe um pedaço de salmão para saciar a fome e a mãe responde apenas com um gesto simples. As crianças nunca sabem a medida da escassez então comem pedaços de gelo na falta de outros alimentos ou novas alternativas. Os adultos seguem na frente ditando o ritmo e o caminho, mas nem sempre sabem a melhor direção; tudo está coberto de neve e qualquer caminho pode dar em qualquer lugar, então não há muita escolha.
Os nômades se entreolham na estrada, mas não se falam; a frieza já invadiu as epidermes e tudo parece somente desolação e frieza que não têm hora para acabar. Ao lado de um bloco de gelo uma cabana vendendo produtos enlatados: Atum e sardinhas em conservantes; os alimentos naturais perderam a validade. Tudo deve ser congelado para durar pelo menos duas estações e meia.
Na descida de uma pequena depressão uma pequena cabana servindo de escola; embora não há muito que apreender, apenas como furar buracos no gelo em busca de algum alimento e aprender onde buscar pedaços de estacas para se aquecer durante a noite. Passar muito tempo dentro de uma escola é tempo perdido, e num lugar tão inóspito pode ser uma sentença de morte ou a qualquer momento alguém sempre pode morrer de frio e fome nesses tempos de tanta escassez. Parece que ninguém está notando.
O gelo derrete durante a madrugada e antes do sol nascer, evapora. Então é preciso passar toda madrugada em busca de um pedaço de gelo para não morrer de fome e sede, embora lá fora o frio seja intenso e o risco de avalanches, constante, sem contar com os lobos famintos uivando lá fora no meio da relva. Alguém pode ser sempre devorado num piscar de olhos.
Na passagem de uma zona glacial vi um pouco mais adiante refugos de ossos carregados por corpos despedaçados e solitários, caminhando sem destino por um caminho demasiadamente frio e lúgubre.
Depois de meses andando sobre a neve tendo como companhia uma temperatura de vários graus abaixo de zero, todos estavam cansados e alguns em estado lastimável. Não havia lugar para descansar. Do lado esquerdo um pequeno lago com focas devorando uma presa e disputando com outras o melhor pedaço de carne, usavam uma violência excessiva semelhante àquelas dos homens de terra firme. As tempestades de gelo estão cada vez mais desastrosas. As pessoas parecem estar cada vez mais empilhadas sobre as avalanches de neves ou em bueiros escuros…
Com a velocidade de como tudo está acontecendo não há muito tempo a perder nem no que pensar. Tudo parece muito rápido, embora a comunicação ainda continue como nos tempos primitivos ou atuais, não se sabe.
Neste momento estou com muita dor no corpo e os ossos doem muito. Meu sangue parece petrificado como o gelo da Antártida, embora esta última atualmente esteja mais fluida e parece não mais retornar ao estado anterior.
Estou tremendo e com muito frio, pareço aquele desgraçado sem roupa ou cobertor e diante de um frio de muitos graus abaixo de zero ou uma temperatura torrando e destruindo a têmpora. Viajo diante de um tempo muito oscilante.
Já se passaram dez anos e agora tudo que ele menos quer saber é como se desenrola o mundo lá fora. Tudo ainda é muito gelado tal como antes. Ou melhor, a frieza parece muito mais intensa do que outrora. As famílias ao longo do tempo se dissolveram e com tamanha escassez nesta zona gelada as individualidades e a frieza das epidermes estão cada vez mais intensas. Os nômades que seguiam o caminho juntos, tomaram suas próprias direções.
O céu parece escuro e a neve cada vez mais intensa. Todos parecem aturdidos e em constante estado de devaneios. Nada parece justificável e a explicação parece algo vazio vindo do outro lado do mapa.

– Queria saber como estar o caminho?

– O caminho lá atrás está tão frio quanto este que pisamos e vivemos.

– Eu estou procurando minha irmã e achava que ela viria com essa turma de nômades. Você sabe me dizer se vinha mais alguém atrás de vocês? Viu alguma coisa pelo caminho, alguma notícia?

– Não. Não vi ninguém quando passei pelo último caminho. O que vi de fato foram corpos petrificados na neve. O rosto estava deformado e não havia jeito de reconhecer ninguém. Sugiro que siga andado seguindo adiante, pois a frieza está em toda parte e talvez morra de frio devido às constantes avalanches. As pessoas também estão mudas e dificilmente dirão alguma coisa, estão chocadas pelo estado em que tudo se encontra ao seu redor.

– Com licença pois agora preciso ir seguindo em direção aquela montanha de gelo.

– Também acho que vou seguir nesta direção, pois vejo que não há muita escolha.

Viajávamos num grupo de treze pessoas onde as mulheres eram maioria; são cinco homens e sete mulheres e entre elas duas pequenas, uma de treze anos e a outra não mais que oito…
O sol parece querer aparecer, mas o tempo ainda é incerto. Ainda há muita neve e frio em toda parte e parece não ter hora para cessar as avalanches de gelo e com isso os desastres naturais são cada vez mais intensos. Ninguém está notando.

Trecho do Romance “O nômade metropolitano”. Previsão de lançamento para 2014.

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