Imagens e Booktrailer do livro Cores de Indochina


Lançamento digital da Revista Penalux. Disponível para download:
EM BREVE!
CHÃO AREJADO – EXPOSIÇÃO MOSTRA POÉTICA IMAGENS E INSTINTOS
Produção e Edição de Vídeo e Documentário: Lais Rilda
Residência Artística para experiências intercambiáveis…
http://www.aerogrammestudio.com/2017/01/05/residencies-for-writers-2017/
VII Simpósio Internacional sobre Literatura Brasileira Contemporânea
cartografias da produção atual
As tarefas da educação
Rubem Alves
Resumindo: são duas, apenas duas, as tarefas da educação. Como acho que as explicações conceituais são difíceis de aprender e fáceis de esquecer, eu caminho sempre pelo caminho dos poetas, que é o caminho das imagens. Uma boa imagem é inesquecível. Assim, em vez explicar o que disse, vou mostrar o que disse por meio de uma imagem.
O corpo carrega duas caixas. Na mão direita, mão da destreza e do trabalho, ele leva uma caixa de ferramentas. E na mão esquerda, mão do coração, ele leva uma caixa de brinquedos. Ferramentas são melhorias do corpo. Os animais não precisam de ferramentas porque seus corpos já são ferramentas. Eles lhes dão tudo aquilo de que necessitam para sobreviver.
Como são desajeitados os seres humanos quando comparados com os animais! Veja, por exemplo, os macacos. Sem nenhum treinamento especial eles tirariam medalhas de ouro na ginástica olímpica. E os saltos das pulgas e dos gafanhotos! Já prestou atenção na velocidade das formigas? Mais velozes a pé, proporcionalmente, que os bólidos de F-1! O vôo dos urubus, os buracos dos tatus, as teias das aranhas, as conchas dos moluscos, a língua saltadora dos sapos, o veneno das taturanas, os dentes dos castores.
Nossa inteligência se desenvolveu para compensar nossa incompetência corporal. Inventou melhorias para o corpo: porretes, pilões, facas, flechas, redes, barcos, jegues, bicicletas, casas… Disse Marshall MacLuhan corretamente que todos os “meios” são extensões do corpo. É isso que são as ferramentas, meios para viver. Ferramentas aumentam a nossa força, nos dão poder. Sem ser dotado de força de corpo, pela inteligência o homem se transformou no mais forte de todos os animais, o mais terrível, o maior criador, o mais destruidor. O homem tem poder para transformar o mundo num paraíso ou num deserto.
A primeira tarefa de cada geração, dos pais, é passar aos filhos, como herança, a caixa de ferramentas. Para que eles não tenham de começar da estaca zero. Para que eles não precisem pensar soluções que já existem. Muitas ferramentas são objetos: sapatos, escovas, facas, canetas, óculos, carros, computadores. Os pais apresentam tais ferramentas aos seus filhos e lhes ensinam como devem ser usadas. Com o passar do tempo, muitas ferramentas, muitos objetos e muitos de seus usos se tornam obsoletos. Quando isso acontece, eles são retirados da caixa. São esquecidos por não terem mais uso. As meninas não têm de aprender a torrar café numa panela de ferro, e os meninos não têm de aprender a usar arco-e-flecha para encontrar o café da manhã. Somente os velhos ainda sabem apontar os lápis com um canivete…
Outras ferramentas são puras habilidades. Andar, falar, construir. Uma habilidade extraordinária que usamos o tempo todo, mas de que não temos consciência, é a capacidade de construir, na cabeça, as realidades virtuais chamadas mapas. Para nos entendermos na nossa casa, temos de ter mapas dos seus cômodos e mapas dos lugares onde as coisas estão guardadas. Fazemos mapas da casa. Fazemos mapas da cidade, do mundo, do universo. Sem mapas, seríamos seres perdidos, sem direção.
A ciência é, ao mesmo tempo, uma enorme caixa de ferramentas e, mais importante que suas ferramentas, um saber de como se fazem as ferramentas. O uso das ferramentas científicas que já existem pode ser ensinado. Mas a arte de construir ferramentas novas, para isso há de saber pensar. A arte de pensar é a ponte para o desconhecido. Assim, tão importante quanto a aprendizagem do uso das ferramentas existentes —coisa que se pode aprender mecanicamente— é a arte de construir ferramentas novas. Na caixa das ferramentas, ao lado das ferramentas existentes, mas num compartimento separado, está a arte de pensar.
(Fico a pensar: o que as escolas ensinam? Elas ensinam as ferramentas existentes ou a arte de pensar, chave para as ferramentas inexistentes? O problema: os processos de avaliação sabem como testar o conhecimento das ferramentas. Mas que procedimentos adotar para avaliar a arte de pensar?).
Assim, diante da caixa de ferramentas, o professor tem de se perguntar: “Isso que estou ensinando é ferramenta para quê? De que forma pode ser usado? Em que aumenta a competência dos meus alunos para cada um viver a sua vida?”. Se não houver resposta, pode estar certo de uma coisa: ferramenta não é.
Mas há uma outra caixa, na mão esquerda, a mão do coração. Essa caixa está cheia de coisas que não servem para nada. Inúteis. Lá estão um livro de poemas da Cecília Meireles, a “Valsinha” de Chico Buarque, um cheiro de jasmim, um quadro de Monet, um vento no rosto, uma sonata de Mozart, o riso de uma criança, um saco de bolas de gude… Coisas inúteis. E, no entanto, elas nos fazem sorrir. E não é para isso que se educa? Para que nossos filhos saibam sorrir? Na próxima vez, a gente abre a caixa dos brinquedos…
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/sinapse/ult1063u855.shtml
http://www.kickante.com.br/campanhas/livro-exposicao
Produção e Edição de Vídeo e Documentário
Otávio Calmon Valverde
Trilha Sonora
Nome
Narração
Nome
Produção e Montagem de Plataforma
Marcos Torres & Patrícia Rigotti
Curadoria
Salvador/Ba
Nome
Setembro de 2016
Cachoeira/Ba
Nome
Outubro de 2016
São Paulo
Patrícia Rigotti
Fotografia
Otávio Calmon Valverde
Produção e Direção Geral
Marcos Torres & Uillian Novaes
Realização & Apoio Institucional:
Biblioteca Universitária Reitor Macêdo Costa
Sistema Universitário de Bibliotecas da UFBA
Espaço Cultural Hansen Bahia
Patrocinadores:
Trata-se de um projeto que já vinha sendo pensado e maturado há mais de cinco anos e só há pouco mais de dois anos é que ele foi de fato para o papel, produção e execução efetivamente.
Falando sobre o projeto propriamente dito e seus aparatos conceituais, há animais que vivem na natureza com todos os seus instintos de sobrevivência. Há outros que vivem em contextos urbanos com todas as suas turbulências sociais, culturais e históricas e suas ambivalências e paradoxos. Nesse sentido há significativas distinções entre eles. Existe uma diferença entre os animais que vivem na natureza por puro instinto de sobrevivência e com todas as suas agruras para sobreviver num terreno muitas vezes hostil em relação a outros seres bípedes (o Homem) que em muitos momentos se apropriam desses mesmos instintos de sobrevivência para responder grande parte de suas imposturas diante da vida e dos outros.
É importante salientar que tanto o livro Chão Arejado quanto a ideia da Exposição Mostra Poética Imagens e Instintos nasceram da impactante imagem do menino sudanês se arrastando sob o olhar atento de um abutre e ambos num terreno demasiadamente hostil em meio a uma Guerra Civil sangrenta que assolava o Sudão nos idos dos anos de 1980/90. Este projeto como um todo também nasceu da notícia impactante sobre a morte prematura do fotógrafo Kevin Carter por meio de anfetaminas e suicídio anos após o dia fatídico de ter tirado aquela foto e, segundo dizem, não ter espantado o abutre. Mesmo diante de tantos equívocos e paradoxos disseminados no inconsciente coletivo, Kevin Carter foi reconhecido posteriormente pelo seu trabalho fotográfico ao registrar um mundo mergulhado no horror e em meio ao caos, fome e dor. O abutre era e é apenas uma força da natureza com todos os seus instintos de sobrevivência. Estava ali movido por forças da natureza e seus instintos de sobrevivência e isso era tudo.
Há uma tarefa árdua e ao mesmo tempo uma sensação estranha ao tentar esboçar e justificar algo trazido do tecido de citações e dos mil focos da cultura, que, por sua vez, será deixado um campo aberto de significações, reapropriações e releituras a partir de experiências pessoais e da relação entre sujeito e objeto. Mas diante de tal empreitada o que talvez seja pertinente apresentar nesta exposição e para reflexão é o modo como os poemas e desenhos são entrelaçados com uma multiplicidade de linguagens e como são apresentados a partir de certas inquietações contemporâneas com a emergência deste projeto no sentido amplo de sua composição, com o objetivo de suscitar várias inquietações e reavaliações e novas posturas críticas de leitores e leitoras inseridos na cultura e imersos em suas experiências sociais, culturais e afetivas. O Deslocamento do Olhar e a Ampliação do Horizonte de Percepção talvez sejam os pontos centrais do discurso do livro e da Exposição.
A importância e a motivação para escrever este livro e montar esta Exposição justificam-se porque partiu de uma percepção e da necessidade de romper barricadas e trazer novas experiências além de suas fronteiras: a importância de observar e se relacionar com culturas e experiências alhures que vão muito além da cultura ocidental, ou melhor, além de qualquer classificação ou modelo de vida e experiência, além do desconhecido, do diferente, de seus costumes, aspectos culturais e de suas epidermes e instintos; abre novas perspectivas para se ir além das vivências geográfico-espaço-temporais, marcadas muitas vezes por um discurso hegemônico e inquestionável e não menos beligerante, sob a responsabilidade de sociedades disciplinares e de controle que moldam os sujeitos e suas ações e nessa esteira o disciplinamento e o dilaceramento dos corpos motivado por ações arbitrárias e brutais de toda ordem.
Com efeito, sua relevância cultural pode apontar para o reconhecimento de culturas alhures muitas vezes esquecidas e ou apagadas de processos culturais e históricos, de sua relevância e valor simbólico entre os quais sujeitos e seres vivos estão ali inseridos como parte integrante daquela sociedade e sem jamais perderem de vista suas relações com as outras esferas humanas e suas relações sociais e afetivas, a partir de um processo histórico indissociável tanto no meio em que vivem como também poder ir além de suas fronteiras espaciais, geográficas, sociais e culturais.
O projeto aqui apresentado é desenvolvido por dois artistas, sendo um poeta e escritor e o outro artista visual, a saber: Marcos Torres e Uillian Novaes; o projeto como um todo está articulado com duas propostas: o livro Chão Arejado com uma coletânea de 40 desenhos mais a ilustração da capa, com esboços feitos a lápis e finalizados com bico de pena e nanquim com 123 poemas sendo três para cada desenho e mais os três poemas de abertura conjugados com a imagem da capa e com a Exposição Mostra Poética Imagens e Instintos. Exposição composta de 40 desenhos em molduras cujas ilustrações são todos elas na sua versão original e com suas dimensões de 37X47 em papel A3 e moldura em madeira; 40 poemas em plotagem ou impressão fotográfica em papel le plume, dois banners com dimensões 70X90 com impressão fotográfica em papel le plume trazendo ilustrações de rascunhos e esboços (poemas e desenhos refeitos e ou inacabados: o refazer da arte e seus processos de composição em busca de uma expressão); disposição de seis a quatro notebooks, uma TV de tela led e um projetor de slides em alta resolução para apresentação de esboços, rascunhos, slides, filmes, documentários, vídeos, músicas e making-off/Documentário; e duas enciclopédias sendo uma dividida em cinco volumes e outra em volume único as quais vão estar disponíveis para a leitura e manuseio cuidadoso dos/as leitores/as e demais visitantes para apreciação dos conteúdos expostos e disponíveis à leitura, no sentido de ampliar novas formas de pensamento e ação para troca de ideias.
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Saudações Artísticas
Marcos Torres & Uillian Novaes
Posted by: Walter Alfredo Voigt Bach , março 13, 2015
Completamente sem Dignidade: entrevista com Karl Ove Knausgard
Karl Ove Knausgard fala sobre o processo de escrita de suas obras autobiográficas
Karl Ove Knausgard. Se o nome do norueguês não significar muito, talvez sua obra diga algo. Seus livros autobiográficos estouraram comercialmente em seu país natal, e não tardou para o mundo ler sua produção e se perguntar o que há de tão especial nela. Os seis volumes da série Minha Luta, dos quais os dois primeiros já foram lançados aqui no Brasil – Minha Luta e Um outro Amor, em 2013 e 2014, respectivamente – totalizam 3500 páginas.
Além do tamanho, a forma como Knausgard tratou de temas da própria vida e da sociedade causou polêmica na Noruega. A Paris Review publicou uma entrevista com o autor em dezembro de 2013, e o Homo Literatus traduziu alguns trechos dela. Com a palavra, Karl Ove Knausgard, o homem sem dignidade.
***
Você escreveu em diários quando mais novo?
Escrevi, sim, mas queimei-os todos aos vinte e cinco ou vinte e seis anos.
Por quê?
Estava com vergonha, não dava para aguentar. A mesma coisa acontece com os Minha luta, eu não aguento. Se pudesse, queimaria toda a série, também, mas as impressões são muitas, então é impossível.
A vida se desenvolve, muda, segue em frente. Já as formas de literatura não. Então, se quer que a escrita se aproxime da vida — e não digo isso como uma desculpa para o realismo — mas, se quer escrever de forma próxima à vida, é preciso quebrar as formas antigas, o que significa que você sempre terá a sensação de estar escrevendo o primeiro romance pela primeira vez, o que significa que você não sabe escrever. Todos os bons escritores têm isso em comum, eles não sabem escrever.
Mas queimar um romance é diferente de queimar um diário, não é? Queimar um diário é repudiar uma forma anterior de si mesmo.
Uma coisa é ser banal e estúpido em seu interior. Outra coisa é capturar tudo isso na escrita. Quando comecei a escrever de forma mais sistemática, não consegui aguentar aquele maldito escritor de diários dentro de mim, eu precisava me livrar dele. E me livrei, sozinho em meu apartamento estudantil, página por página.
Mas qualquer pessoa com o menor conhecimento de literatura e escrita — talvez de arte em geral — sabe que reprimir o que nos traz vergonha jamais leva a nada de valor. Isso é algo que descobri mais tarde, ao escrever meu primeiro romance, quando as partes das quais eu mais me envergonhava por ter escrito eram as mesmas que meu editor apontava e dizia: “Isso é muito bom!” De certa forma, foi meu termômetro de vergonha, a crença de que o sentimento de vergonha ou de culpa significava relevância, que finalmente me levou a escrever sobre mim mesmo, o ato mais vergonhoso de todos, em uma tentativa de atingir a inocência do escritor de diários então queimado.
A Escandinávia não tem como tradição a escrita de memórias, mas tem escritores de diários. Olav H. Hauge, o poeta norueguês, escreveu um diário de três mil páginas que foi publicado após sua morte, quando você tinha cerca de vinte e seis anos. Você teve uma reação forte a isso?
Sim, tive. Eu o li com muita intensidade em um período curto de tempo, durante uma espécie de crise em minha vida. Foi uma obsessão. E era muito estranho, porque ele escreveu de 1916, ou algo assim, até 1990, então o diário cobre toda sua vida. E Hauge quase não saiu da fazenda. Nada acontece na vida dele. E ele escreve sobre nada, mesmo. Nada acontece, a não ser por seus pensamentos e a colheita das maçãs.
É uma espécie de escrita hipnótica, o que deveria ser algo chato. Quer dizer, temos vários exemplos disso. Lars Norén, o dramaturgo sueco, publicou um diário recentemente, que eu li durante a escrita de Minha luta, e foi a mesma coisa. Cinquenta páginas sobre jardinagem, e deveria ter sido horrível, muito chato. Mas há algo mágico ali, algo de hipnótico, e foi a mesma coisa com Hauge. Ele se repete a todo momento. Não é bom se pensarmos em termos de redação, não é bom se pensarmos termos de narrativa, mas ainda é hipnótico. E acho que isso tem a ver com o sentimento de proximidade.
Pode falar sobre como você se lembra do passado quando está escrevendo?
Escrever é recordar. Nisso eu sou um proustiano clássico. Se você joga futebol pela primeira vez em vinte anos, por exemplo, ao realizar todos aqueles movimentos de novo, você acaba fazendo com que o corpo se lembre não apenas dos movimentos estranhamente familiares, mas também de tudo conectado a jogar futebol, e, por alguns segundos, todo um mundo é trazido de volta a você. De onde ele veio? Acredito que toda a nossa experiência é mantida dentro de nós, só precisamos de um pequeno lembrete para que alguma coisa seja liberada.
Quando comecei o romance, imaginei nossa casa, imaginei a mim mesmo andando até ela, estava nevando, estava escuro, dentro dela estavam meu pai e minha mãe, e eu me lembrei da sensação da neve, e do cheiro da neve, e dos sentimentos que eu tinha em relação ao meu pai naquela época, e os em relação à minha mãe, e lá estava o gato atravessando a estrada e, do outro lado do rio, as luzes de um carro. O silêncio na floresta. Meu amigo, Jan Vidar, estava ali, em algum lugar, e também a garota por quem eu era louco, e a forma da qual eu pensava nele e nela, e a luz da janela meio que brilhava, e me lembrei de um episódio na pista de esqui, e abri a porta, e ali, no chão, os sapatos daquela época, o cheiro, a atmosfera.
Minha memória é basicamente visual, é disso que me lembro, de cômodos e de paisagens. Não me lembro do que as pessoas nesses cômodos me diziam. Quando escrevo ou leio, nunca vejo letras, nem frases, vejo apenas as imagens que elas produzem. O mais interessante é que o processo de escrever ficção é exatamente o mesmo para mim, a única diferença é que as paisagens são imaginárias. Essas imagens têm relação com a forma da qual você pensa em um lugar no qual você nunca esteve, onde você imagina tudo, as casas, as montanhas, os mercados. E então, no segundo em que você está lá e vê como o local é de verdade, o peso da realidade cai sobre sua versão imaginada. Mas de onde veio aquela versão, em primeiro lugar?
Seu pai e Jan Vidar são personagens em Minha luta. Você acha que uma memória ou ensaio realista tem obrigações éticas para com seus indivíduos?
Sim.
Faz sentido pensar em Minha luta como uma espécie de confissão no sentido agostiniano, uma autobiografia espiritual?
O livro flerta com essa dimensão, é claro. Mas não é algo no qual eu tenha pensado estilisticamente.
Então eu talvez esteja errado sobre Agostinho, mas você estudou a Bíblia, não? Você traduziu partes dela. Seu segundo romance é sobre uma questão teológica bastante tradicional — a natureza do divino pode mudar? Não consigo deixar de pensar que você tenha uma relação profunda com a escrita religiosa, algo além da busca moderna por uma dimensão de vida “espiritual”.
Devo dizer que é difícil falar sobre isso.
Por dois anos trabalhei como uma espécie de conselheiro em uma equipe que traduziu a Bíblia para o norueguês. Foi lá que aprendi a ler. A diferença entre as duas línguas foi um choque, e tornou possível a experiência, não apenas o reconhecimento, da diferença entre linguagem e o mundo, a arbitrariedade da qual todos falavam nos anos oitenta era, de repente, visível para mim.
A morte do pai. Companhia das Letras
Uma outra lição foi a de que, no Velho Testamento, tudo é concreto, nada é abstrato. Deus é concreto, os anjos são concretos, e tudo tem a ver com corpos em movimento, o que dizem, o que fazem, mas nunca o que pensam. Não há especulações, nem reflexões. Até mesmo as metáforas são conectadas a corpos. Tornei-me particularmente interessado na história de Caim e Abel, quando descai o semblante de Caim, e Deus pergunta: “Por que descaiu o teu semblante? Levante-o!” Caim não encara os olhos de ninguém, e ninguém encara os dele. Isso é para se esconder do mundo e do outro. E isso é perigoso.
No sexto livro de Minha luta, eu escrevi quatrocentas páginas sobre o Minha luta de Adolf Hitler. Hitler foi um homem que viveu por um ano sem ver ninguém, apenas sentado em seu quarto, lendo, e, quando saiu desse quarto, não permitiu que ninguém se aproximasse, e ficou assim, intransigente, pelo resto de sua vida, e uma coisa característica de seu livro é que há um “eu” e um “nós”, mas não um “você”. E, enquanto eu escrevia sobre Hitler, um jovem norueguês que passou cerca de dois anos sozinho e escreveu um manifesto também com um “eu” poderoso, e um “nós”, mas também sem nenhum “você”, massacrou sessenta e nove jovens em uma ilha. Em outras palavras, descaiu-lhe o semblante.
A diferença entre linguagem e o mundo, a ênfase no aspecto material do mundo, e Hitler escrevendo o Minha luta me levou a Paul Celan, porque a língua na qual ele escrevia foi destruída pelos nazistas. Ele não podia mais escrever sangue, que circulava em suas veias, ou solo, sobre qual ele andava. De repente, nenhuma palavra representava algo geral, que implicava um “nós”, porque o “nós” nessa língua não era o “nós” de Celan.
Seu poema final sobre o Holocausto, então, é um poema no qual cada palavra parece ter sido criada pela primeira vez, todas no singular, porque o “nós” foi perdido, caiu em um abismo, é o nada, e nisso vemos uma outra coisa que não história, vemos, mais especificamente, o lado de fora da linguagem, que é, na verdade, impensável, porque pensamentos são linguagem, mas ainda presente. É o mundo, fora de alcance para nós, e é a morte.
O que vê de diferente entre você e um escritor como Celan?
Meu livro é muito sobre o que experiências são e para que elas servem, mas não é sobre as experiências em si. É uma coisa secundária. É um livro secundário. Um livro sobre experiências, mas que não produz essas experiências. É por isso que escrevo sobre Celan em vez de tentar escrever como Celan. É o segundo lugar. Eu sei disso, e nem mil resenhas positivas podem me fazer esquecer. No fim, quero escrever um livro que chegue lá. Essa é a ambição, é claro.
E você consegue imaginar como seria isso?
Não. É impossível. Tenho apenas de começar a escrever e esperar que algo aconteça durante as primeiras mil páginas.
O humor é uma grande parte do seu trabalho, nas pequenas mudanças em como você se sente sendo você mesmo de um momento a outro. Se sentindo bem em um minuto, e no outro pensando, ‘que pilha de merda foi essa’. É essa a sua experiência de vida, ou apenas algo que que a forma te devolve?
É o resultado de seguir as situações bem de perto. Mas não significa que não hajam consequências existênciais! Em um romance, como na vida real, humores e atmosferas, essa pequenas mudanças na mente, são parte de pensamento e reflexão. Temos a ideia de que o puro pensamento existe. Não existe. No meu mundo, tudo que vejo são agendas ocultas, mais frequentes do que não ocultas mesmo de nós. As pessoas não sabem nada de si mesmas, por isso elas fazem o que fazem.Elas acham que sabem, mas oh não, nada disso. Por exemplo, Adorno defende a razão em seu O Jargão da Autenticidade, e ataca os fenomenologistas. Isto em apenas poucos anos após a guerra, e seus argumentos são raivosos, mas ele não reconhece isso. Irracionalidade, sentimentos – pertencem a Heidegger e seus seguidores. Mas Heidegger de sua parte, discutiu o humor, e o considerou central de uma forma com a qual podemos nos relacionar com o mundo, porque sempre temos humor, assim como sempre há o clima.
O humor afeta o pensamento. Faz dele muito mais complexo. E porque tenho cerca de três mil páginas, posso usar digressões ensaísticas em um sentido narrativo. Tenho ensaios me representando aos vinte e cinco, que são muito, muito estúpidos, onde digo uma porção de coisas puramente infantis e idiotas. Então, cinco anos depois, tenho outra parte ensaística que se relaciona com isso, mas é bem mais sofisticada. Algo aconteceu. Há um tipo de narração no material ensaístico que nem sempre se faz estritamente como um ensaísta.
Como ensaísta, você apenas escreve. Você não usa a si mesmo nessse sentido. Você não providencia o ensaio estúpido para mostrar como a idade muda seu pensamento por exemplo.
Eu estava na Alemanha, falando com meu editor alemão, e estávamos falando sobre isso porque no último livro tem esse longo ensaio sobre Hitler, tratando Hitler como um ser humano, e esse é um assunto muito delicado na Alemanha, claro. Então o que deveríamos fazer com isso? Deveríamos pedir a um historiador para o ler e modificar, e tratar como um ensaio? Ou devemos apenas tratar como um maluco da Noruega escrevendo o que pensa?
O que vocês decidiram?
Manter como está.
Quando estávamos conversando via e-mail e nos preparando para essa entrevista, você disse nunca ter usado o Skype antes. Posso perguntar o que pensa disso?
Eu realmente o odeio. Detesto o fato de que estamos perdendo nossos locais, no sentido do que nos cerca, não apenas restaurantes ou lojas. Realmente desprezo o que têm acontecido nos últimos trinta ou quarenta anos. O mundo físico se foi.
Isso me lembra de como você escreveu sobre Lucretius, gostando dele por sua atenção a presença física do mundo. É interessante, porque seus livros abordam esse problema teoricamente, mas ao mesmo tempo a textura deles é bem física. Você encosta suas mãos em cada objeto – torradas, garrafas, cigarros, toalhas de mesa.
Isso era algo em que eu pensava o tempo todo enquanto escrevia. É central para mim. Mas como você disse, é um paradoxo. É escrita, não a coisa real.
Um outro amor. Companhia das Letras
O sexto livro de fato acaba na Noruega, com Anders Breivik matando sessenta e nove crianças na Ilha de Utoya. Isso aconteceu enquanto eu escrevia. Realmente é uma situação em que ele tinha essas imagens do mundo. E então ele vai a ilha e mata essas pessoas. É um ato físico. Um coisa que ele disse na corte foi “Era tão estranho, atirar em talvez sete adolescentes, eles estavam apoiados na parede, e não se mexiam. Por que não estavam se mexendo? Eu esperava que eles se movessem, tentassem escapar, mas eles estavam apenas parados enquanto eu atirava neles.” Aquilo não correspondia as imagens que ele tinha em mente.
E o romance acaba ali, naquele lugar, naquela colisão entre o paraíso abstrato que temos acima de nós e a nossa Terra física.Onde aconteceram as matanças de Breivik. É a mesma coisa que aconteceu durante o nazismo, quando Hitler impôs uma imagem abstrata sobre a realidade física do mundo. É isso que me interessa na vida cotidiana, quando isso acontece.
Enquanto Breivik atirava nessas pessoas, ele ouvia a trilha sonora de Senhor dos Anéis em fones de ouvido. Ele jogava Call of Duty obsessivamente. Ele habitava mundos virtuais.
Breivik jogava muitos jogos de computador. Ele jogou profissionalmente por anos. Essa é parte interessante de como aconteceu, os limites entre o imaginário e o real. Isso está totalmente manchado nele. Era isso que o impossibilitava de matar. Porque normalmente é impossível matar, ou pelo menos matar mais do que um ou dois.
Se você está na marinha norte-americana, você é treinado em um processo desumanizador. Você é treinado como um profissional, e faz isso com seus amigos, faz isso por eles, e mesmo assim é difícil. Mas Breivik fez tudo sozinho, então não deveria ser possível, mas foi possível, e essa é uma das situações sobre as quais reflito no último livro.
Marinha e nazismo – soam muito maiores e mais ideológicas do que os pequenos e cotidianos eventos dos livros um e dois.
Meu livro é completamente anti-ideológico, em todos os sentidos. É sobre o oposto da ideologia. É sobre o pequeno e o minúsculo, onde estamos na vida. Mas acaba com a colisão deste mundo com a ideologia, que é porque escrevi sobre o nazismo e sobre esses temas. É por isso que acaba ali.
Você já jogou videogames?
Sim. Em 1992, 1993. Eu joguei Doom e esses tipos de jogos. Onde você apenas atirava nas pessoas. Eu podia jogar por vinte e quatro horas, sem problema. Era completamente viciado.
Você ainda fuma?
Sim.
Por que você é viciado, ou por gostar?
Eu gosto, infelizmente. Há um escritor na Suécia, chamado Stig Larsson, não o de ficção criminal mas um outro, um modernista, um escrito fantástico, que foi viciado em drogas nos últimos vinte ou trinta anos, e ele teve um infarto então teve de parar. Era por causa da velocidade com que ele tomava. Mas ele disse, se o cigarro me ajuda, é meu dever enquanto escritor de fumar. E se a velocidade ajudasse, seria meu dever como escritor acelerar. Em um sentido é verdade. Mas eu terei de parar um dia – quer dizer, eu tenho crianças.
E quanto ao álcool?
Sou uma pessoa restrita, e não sou bom socialmente, então a bebida é um tipo de liberdade para mim. Mas as consequências são grandes para mim. Não posso parar. Eu fico extremamente bêbado. Recebemos amigos aqui três semanas atrás, e eu era o único bêbado, e fiquei tão extremo que não consigo me lembrar de nada. Foi um desastre, sabe, um jantar e o anfitrião era o único bêbado! Meia garrafa. Eu apenas estava – não conseguia parar. Eu não caio, não adormeço, posso apenas beber beber e beber, e você não pode realmente ver isso em mim, mas por dentro estou totalmente bagunçado e fodido. E como tenho crianças, devo ter alguma dignidade em meu comportamento, e não é o que faço quando estou bêbado. Então tento ser bem cauteloso, é disso que estou falando.
Posso perguntar como o romance afetou seu casamento? O que você fez é tão extremo. É como se você tivesse inventado um novo tipo de casamento, onde metade do casal é transparente e não tem segredos.
Não pensei nisso enquanto fazia. Não pensei nas implicações, em nenhum sentido. Eu estava tão frustrado que não previ as consequências. Pensei, se a consequência for que ela me deixe, então ok, ela pode ir. Era assim. Havia um certo desespero que tornava isso possível, [mas] eu não poderia fazer isso hoje.
Há muito mais em uma relação do que você pode dizer. Você toma apenas mais um passo para trás dentro de si mesmo. Eu nunca entendi a psicanálise. Mencionar coisas não muda nada, não ajuda em nada, são apenas palavras. Existe algo muito mais profundo em um relacionamento do que isso. Revelar histórias e querê-las – são apenas palavras. Amor é algo além.
A escrita de Minha Luta te deu o que você esperava?
Não posso falar por outros escritores mas escrevo para criar algo que seja melhor para mim, acho que é a motivação mais profunda, porque sou muito relutante e envergonhado. A escrita não faz de mim uma pessoa melhor, nem mais sábio nem mais feliz, mas a escrita, o texto, o romance, é uma criação de algo fora de mim, um objeto, meio que neutralizado pela objetividade da literatura e da forma. O temperamento, a voz, o estilo. Tudo nele é cuidadosamente construído e controlado. Isso é a escrita para mim – uma mão fria em uma testa quente.
Entrevista original em inglês.
Tradução : André Caniato e Walter Bach
Entrevista também disponível abaixo:
http://homoliteratus.com/completamente-sem-dignidade-entrevista-com-karl-ove-knausgard/
Livro de jornalista da New Yorker conta detalhes da vida do escritor Philip Roth ao mesmo tempo em que analisa cada um de seus livros
Costuma-se dizer, no meio literário, que a real importância de um escritor só pode ser medida após 20 anos – ou mais – de sua morte. Isso não chega a ser uma regra, mas há exceções. José Saramago, J.M. Coetzee e Alice Munro são alguns exemplos, mas o maior deles talvez seja Philip Roth.
Texto na íntegra aqui: