

DEPOIS
Marcos Torres
Não sei que dia é hoje.
Tanto faz. Um dia é sempre depois do outro.
Devo dizer.
Vamos fazer uma viagem.
Conosco, levaremos uma mochila velha.
Dentro: um pacote de bolacha Maria, e um cantil.
Há sempre alguém com fome e sede no meio do caminho.
No caminho, levaremos sorrisos, abraços, um ombro amigo,
lenços para enxugar lágrimas de pais, filhos, irmãs e mães que choram.
Também levaremos um livro para ler e emprestar,
uma gaita para tocar nos dias frios,
uma poesia para acalentar os corações aflitos,
um apito para pedir socorro,
um medidor de pressão,
um estetoscópio,
pedaços de gaze e esparadrapos,
a situação pode exigir.
Ao longo do caminho iremos precisar cicatrizar e curar algumas feridas.
Por muito tempo, ficamos sem voz.
Nossos braços, cansados.
Os olhos, fatigados.
Lá fora, o tempo está opaco.
O céu, escuro.
As ruas, congestionadas.
Já não sabemos mais identificar os dias e as noites?
É tão bonito ver as praças arborizadas
e o parque onde brincam as crianças, rindo, correndo, pulando.
Licença, pois vamos precisar atravessar esse túnel,
e seguir, com essas cicatrizes no peito, rosto e corpo,
em busca de um outro mundo,
mesmo com essas pedras no meio do caminho,
carrascos e sanguinários canibais,
abutres que vivem nas sombras,
em meio a tantas injustiças, indiferença e nenhuma indignação.
Seguiremos, mesmo sem sabermos o que vamos encontrar, depois.
Vamos meus irmãos e irmãs, com nosso corpo-cidade, corpo-ação,
corpo-movimento, corpo-político.
O tempo da apatia, passividade e imobilidade, acabou.
A hora é agora, avante, não há mais tempo.
Se temos ‘um defeito de cor’, viraremos um camaleão,
e lavaremos conosco a cor do vermelho-sangue de nossa indignação.
Chegou a hora dos levantes e revoltas, vamos salvar ‘os condenados da terra’, com ‘a enxada e a lança’, ‘a manilha e o libambo,’ porque ‘o sol é para todos’; marchemos, em meio a ‘um rio chamado atlântico’ em direção ao ‘atlântico negro’, porque muitos fingem não saber ‘a origem dos outros’.
Estávamos com a sensação de prisioneiros ilhados, enjaulados,
mas não importa, pois sabemos ‘por que o passarinho canta na gaiola’.
Já não há mais tempo nem mais nada a fim de deixarmos para depois.