Arquivo de abril, 2013

Lançamento de “O andarilho”

Publicado: abril 25, 2013 em Conto

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Quero aqui agradecer a todos que compareceram ao lançamento do livro “O andarilho”. Este é um ato de muita generosidade e uma injeção de ânimo para que o autor busque sempre apresentar uma dicção ficcional de melhor calibre…Para os que não vieram, até o nosso próximo encontro, com o lançamento do segundo livro da trilogia “Impressões Temporárias”, “Cores da Indochina” (2014/15), ambientado na Tailândia, Camboja e Vietnã… (ou então nos esbarramos por aí nas esquinas da vida…).

Aeroplanos luminosos – Paul La Farge

Publicado: abril 23, 2013 em Conto

Águas rasas: o que a internet está fazendo com nossos cérebros
Por Nicholas Carr (W.W. Norton, 2010)

Aeroplanos luminosos
Paul La Farge
(Farrar, Strauss and Giroux, 2011)

Jesse Miller

Um romance não pode fazer torradas. Um romance não pode cortar cabelo. Um romance não pode fazer a cama ou caçar coelhos para assar. Não pode desentupir o vaso sanitário. Não pode chamar a polícia. Não pode ligar o aquecimento. Pode servir por alguns minutos como um chapéu protegendo minha cabeça da chuva, mas não por muito tempo, pois não pode evitar que eu fique encharcado. Não pode pagar o aluguel (não ao menos para muitas pessoas). Mas David Foster Wallace diz:”Há um certo toque mágico nas coisas que a ficção faz pela gente”.

A pergunta sobre o que exatamente é um romance e a literatura em geral pode assombrar muitos escritores e poetas que escolheram devotar a vida deles a martelar palavras e frases. William Carlos Williams escreveu que um poema é uma máquina feita de palavras. Uma máquina não apenas pelo modo como um texto é construído, calibrado, testado e refinado durante o processo de escrita, mas também porque um texto faz alguma coisa, tem o potencial de provocar mudanças, de fazer as coisas acontecerem. Para o teórico Nicholas Carr, literatura tem uma tarefa especial para nós na era da internet, do hipertexto, da hipermídia e da hiperatividade. Tal como descrito em seu livro “Águas rasas: o que a internet está fazendo com nossos cérebros”, a internet está mudando não apenas o que lemos e o modo como lemos, mas também o modo como pensamos e também todo o cenário psicológico de nossos cérebros. Na sua opinião, o meio não é apenas a mensagem, é a mensagem que pressiona os contornos de nossa mente, alterando o modo como podemos, ou não, pensar e agir. De um lado, há a internet moldando-nos para a superficialidade, tornando-nos distraídos, seres primitivos; de outro, os romances tentando desviar-nos de nossos impulsos, para que possamos ler pausadamente, fazer conexões e pensar com profundidade.

Acho esse argumento convincente embora não inteiramente surpreendente: O mantra que ouço é: “neurônios que trabalham juntos, permanecem unidos”. (Repita comigo: “neurônicos que trabalham juntos, permanecem unidos”). Funciona e se você repete algumas vezes você se lembrará disso, eletricidade iluminará suas sinapses, novos caminhos serão estabelecidos, como agora sabemos, (“neurônios que trabalham juntos, permanecem unidos”). De algum modo, é libertador reconhecer a neuroplasticidade dos cérebros, admitir que humanos são, na origem de sua individualidade, maleáveis. Mas também é assustador. Particularmente, como adverte Carr, quando não estamos no controle dessa mudança, quando nossas tecnologias, nossas criações, estão nos inventando e quando continuamos a confiar nessas tecnologias com pouca reflexão sobre o modo como permitimos ser remodelados. Para Carr, a internet não é tão ruim (vender essa ideia seria difícil). Nem todas as mudanças provocadas o são.
O alvo de sua reclamação é o fato de que permitimos que a internet modele-nos, fazendo com que percamos muitas coisas que nos fazem humanos:

O maior perigo que enfrentamos é que nos tornamos envolvidos com nossos computadores- como somos capazes de experimentar a vida através de símbolos vacilantes, esvaziados através de nossas telas- e começamos a perder nossa humanidade, sacrificando muitas qualidades que nos distinguiam das máquinas.

A internet oferece-nos constantes e fáceis acessos a informações de insondáveis profundidades, mas, paradoxalmente, de acordo com “Águas rasas”, achata-nos. Para Carr, a ética do consumo que a internet promove é a da distração, da clonagem e do salto, da insaciável voracidade. O que é bloqueado não é apenas a “profundidade da singularidade do eu”, mas também a “profundidade e singularidade da cultura como um todo”. Para Carr, o progresso (seja lá o que isso signifique) parece ter estacionado. Estamos experimentando, diz ele, “um retrocesso na trajetória da civilização”, o controle sobre nossos impulsos que a leitura tornou possível um dia está se desintegrando, fazendo-nos retornar ao ‘estado natural’ de nossos ancestrais.
A narrativa do declínio cognitivo de Carr é uma história relacionada com a função da literatura como uma cura de vida no mundo moderno. Se a internet nos torna menores, para Carr, a literatura pode fazer recuperar nossa profundidade e nos permitir o acesso às “mais profundas – e mais valiosas- formas de pensar de que são capazes nossos cérebros”. É pela leitura que controlamos nossos impulsos primitivos à distração e nos reabilitamos “com nossas capacidades mais humanas- razão, percepção, memória e emoção.” É através da literatura que lemos devagar, pensamos profundamente, construímos memórias e forjamos conexões intelectuais. Carr não está sozinho nesse clamor pela função da ficção. (…) Essa crença nas propriedades curativas da ficção é compartilhada por escritores contemporâneos como Gary Shteyngart e Jonathan Franzen. Este último descreve escritores como administradores que zelam pelo conceito de solidão que parece em perigo em virtude do mundo tecnológico em que vivemos. De acordo com Franzen, é através do espaço de solidão no qual escritores escrevem e leitores leem que a solidão pode ser amenizada e as verdadeiras conexões entre os seres humanos podem ser feitas. Para Franzen, a fachada de conectividade que a tecnologia moderna apresenta é meramente uma característica de sua concepção. Clicar em links e checar e-mails tornou-se um comportamento compulsivo que atiça nosso desejo de conexão, mas não o satisfaz. Falando como escritor, ele diz: “Nosso trabalho é criar livros que nos obriguem a empurrar o leitor para fora desse mundo louco na direção de um lugar calmo para dar-lhe uma experiência real”. Para Franzen ou Carr, ler um livro desenvolve as capacidades que nos tornam humanos, as habilidades de sentir empatia com outras pessoas e pensar profundamente. O declínio da leitura ‘séria’ diante da ubiquidade da tela do computador ameaça nossa humanidade.

É mesmo?
David Foster Wallace, também defendendo a escrita experimental, sugere uma função radicalmente diferente para a ficção. Começando com uma premissa similar que afirma que as pessoas hoje estão “sobrecarregadas pelo número de escolhas que precisam fazer e pelo número de coisas as mais diversas a que têm acesso”, ele sugere que o que a ficção faz é apresentar-nos “o modo como o mundo é sentido através de nossas terminações nervosas”. Mais que servir como um descanso da alienação provocada pelo mundo tecnológico em que vivemos, Wallace adverte que a ficção poderia levar-nos a “ruminar, organizar, selecionar todo tipo de informação disponível e preparar-nos para viver nesse mundo”.
Para críticos como Franzen e Carr, ler é voltar-se para dentro de si, considerando o corpo como uma concha, a mente voltada para dentro: sshhhhh, paz e silêncio, tanto silêncio que se pode ouvir o oceano. Procurando um modo de escapar da distração pela literatura, eles advogam um recuo diante da experiência contemporânea para construir uma marca de subjetividade particular rotulada pelo “Humano” e pelo “Realismo”. Em Fisiologia do romance, uma história da leitura, Nicholas Dames escreve que, para os vitorianos, o romance burguês era temido por ser considerado “um campo de treinamento para a consciência industrializada”, mais que uma fonte de refúgio ou “um antídoto para o assalto ao estímulo representado pela promessa de ascensão moderna” como Carr e Franzen asseveram.

Talvez todos estejam corretos. O que parece claro é que o tipo de existência a que esses críticos aludem e que a literatura pode preservar não é somente apresentada na ficção, que também não parece ser o único modo de compreender a existência humana. “A noção de que a realidade pode ser representada somente através de um certo tipo de atenção narrativa é um desesperado argumento dos realistas”, escreve Ben Marcus na sua defesa de formas experimentais e alternativas de ficção. A despeito de uma virada neurofisiológica que pode explanar sobre o que é uma experiência real, isso não é todo o passado, presente e futuro do romance, nem da experiência humana. Se nós não estamos capacitados para voltar a um mundo sem distração, onde poderíamos voltar a pensar demoradamente e ler profundamente com cuidado, e se aquele mundo nunca realmente existiu a não ser como uma série nostálgica do tipo “como era melhor o passado”, então talvez haja um outro modo de compreender a função da literatura contemporânea na mediação de nossa experiência do mundo.
Como as obras de Baudelaire durante o último quarto do século XIX ou Woolf que conseguiram falar das experiências contemporâneas, eu gostaria que o que está sendo escrito agora explorasse as possibilidades de viver nossa distração e nosso superconectado mundo, que mergulhasse na superficialidade e se relacionasse com as questões apresentadas pela tecnologia moderna e a sociedade contemporânea em rede.

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Aeroplanos luminosos, publicado no outono e escrito por Paul Farge, é o perfeito exemplo desse tipo de texto. Um livro de papel e capa dura tanto quanto um texto on-line imersivo, Aeroplanos luminosos não é apenas uma novela inovadora que joga com os limites da forma, mas também um campo de treinamento que nos prepara para o mundo no qual estamos mergulhados.
O romance conta a história de um jovem programador que deixa sua vida vazia em São Francisco e dirige até Tebas, uma pequena cidade de Nova Iorque, para recolher as coisas deixadas por seu pai após sua morte. Enquanto faz isso, o narrador rumina sobre a experiência de viver nos anos 90 e 00, tenta reacender um relacionamento romântico com uma amiga de infância e, ao mesmo tempo, descobre verdades perdidas sobre a morte do pai. O sentimento de estagnação e antecipação que domina tanto o narrador quanto o leitor, simbolizado pela descrição de um cartão de aniversário recebido de seu avô, assemelha-se a uma onda pronta para quebrar a frieza de seu gelo. É um sentimento que cria empatia com companheiros de um grupo de privilegiados, jovens muito bem educados. Isso é impulsionado por uma condição cultural definida por uma proliferação de oportunidades que nunca foram postas em prática, porque havia a possibilidade de constante conexão e ao mesmo tempo alienação. O que eu quero ser quando crescer? Que roupas eu quero usar? Com quem eu quero sair? Que experiências quero viver? O grande problema da vida contemporânea pode ser um problema criado pela distração não somente por muitas telas mas também por muitas oportunidades de escolha e pouco tempo e ninguém com quem conversar sobre as decisões a tomar: tendo tantas possibilidades é impossível escolher alguma. Como o narrador do romance apresenta: “aqui está tudo e ninguém contará a você o que fazer, onde ir, como começar a compreender as coisas que estão acontecendo”.

O narrador do romance encontra-se preso nesses pensamentos, atormentado pela necessidade de tomar decisões, grandes ou pequenas: se deve ou não ficar com a mulher que está grávida de seu filho, se compra ou não um sofá e uma cadeira. O menor desses atos parece ter o potencial de disparar as maiores consequências. “Tudo poderia ter acontecido de forma diferente”, ele diz, se tivesse comprado um novo móvel que tinha visto pela janela de uma loja. Talvez essa outra compra o tivesse levado ao caminho certo, na direção da felicidade e para resolver as pontas soltas de sua vida. Mas, ao invés disso, ele recua do processo de tomar decisões e permanece na passividade e na inércia: “na verdade, eu não tenho energia ou não teria para comprar móveis”. E mesmo quando se dá conta de que não é capaz de tomar decisões, sempre à espera do momento certo ou do insight perfeito, está irrefletidamente tomando decisões. No fim do romance, o personagem chega à seguinte conclusão: “ Eu vou para a cama toda a noite com a ideia de que amanhã minha vida voltará aos trilhos, mas a verdade é que minha vida estava nos trilhos quando previ isso há trinta anos.”

Aeroplanos luminosos tematiza isso não só através de seu protagonista, mas também através da experiência que fornece a seus leitores. Implora a eles, como o anônimo fracassado de Progress in Flying Machines, um livro sobre as mais recentes experiências sobre o voo humano que o narrador encontra entre as pilhas de lixo de seu avô, que definam metas e façam planos, a despeito da ameaça de fracasso. Aeroplanos luminosos é um experimento para a vida, um kit modelo para tomar decisões no qual as instruções se perderam, como se fossem pobremente traduzidas ou nunca tivessem chegado a existir. O livro dá a você a impressão de estar perdido no mundo através de uma experiência de leitura que pede que você se perca no mundo. No mapa do site do livro, La Farge escreve:

Um dos pontos principais do texto imersivo é que não há ponto de vista esclarecedor a partir do qual você possa se colocar para entender o labirinto todo…é como a vida, para saber como acontece, tem de se ir vivendo.
Quando cliquei para escolher meu próprio caminho pelo hipertexto de La Farge, tive a clara impressão de que estava sendo preparado para enfrentar as mesmas condições do protagonista em apuros do romance, navegando a complexa rede de decisões que tomamos na vida, dentro e fora da web. La Farge apresentou a novela como uma versão em pequena escala do mundo digital (e-world) aberto para o leitor refletir e explorar.

Aeroplanos luminosos interroga os limites do romance e as possibilidades futuras da publicação on-line e impressa, mas também oferece-nos uma resposta sobre o que o romance pode fazer. Como mencionei antes, David Foster Wallace afirma que a chave das características textuais da experiência das pessoas é o sentimento de estarem “sobrecarregadas pelo número de escolhas que têm de fazer e pelo numero de diferentes coisas que têm à disposição”. Talvez Aeroplanos Luminosos esteja sugerindo que um romance faz muito mais do que apenas “impor algum tipo de ordem, ou dar algum tipo de sentido” ao tipo de informação com a qual estamos sendo constantemente bombardeados. Como Wallace afirma, o romance pode capacitar-nos como leitores e nos conectar com esse mundo.

O romance, para Carr e muitos outros, é uma tecnologia que resume o que significa ser humano, os pináculos dos feitos humanos são gravados entre suas capas e não apenas representam, mas formam- neurofisiologicamente mesmo- um conceito e uma experiência do indivíduo como sólido, estável e profundo. Mas compreender um romance desse modo é esquecer toda a tradição de escritores que trabalharam contra as convenções, que acreditavam não refletir suas experiências. Agora, a tecnologia que desafia a profundidade também cria oportunidades na sua superficialidade. Num trecho sobre o hipertexto, La Farge escreve:
Só o romance foi capaz de nos ensinar como eram os indivíduos há 300 anos atrás, dando-nos um espaço para estarmos sozinhos, mas não tão sozinho-um espaço no qual se podia estar sozinho com um livro- então a ficção hipertextual pode levar-nos a tentar algo novo, identidades não-lineares, sem dissolver-nos inteiramente na rede. O romance pode dar-nos um lugar para concentrar nossa dispersão, para focarmos a distração, e, desse modo, possivelmente, compreender no que nós nos transformamos antes que a corrente nos leve.

Que diferença isso faz em relação aos clamores de David L. Ulin, que em outro ensaio recente sobre a distração e a cura da ficção, afirma que a leitura entendida como ajuda para ‘compreender e interagir com o mundo’ tem de nos ajudar a fugir da ‘trivialidade contínua’ da vida mediada pela mídia? Como, se o que literatura e experiência sugerem é que a vida é trivial? Pequenas ações, pequenas decisões. Se ficção não pode preparar um bom suflê, então, no mínimo, pode lançar-nos para fora da cama e se não pode levar-nos para fora de casa, pode levar-nos para o computador. Eu gostaria de pensar que a literatura pode levar-nos a vivenciar a experiência contemporânea e não nos manter longe dela e que ela pode nos ajudar a lidar com as experiências, grandes e pequenas, profundas e superficiais, que são as que verdadeiramente fazem nossas vidas de todos os dias.

Pensar sobre a literatura e o ofício de escrever
Este texto é apenas para quem tem um mísero tempo para pensar sobre a Literatura e o ofício de escrever. As exposições da intimidade e da vida privada de muitos escritores tornaram-se o centro das atenções e suas literaturas ficam muitas vezes como um mero apêndice. Uma espécie de nota de rodapé da atual vida cultural. A publicação de um Livro é muitas vezes um passaporte para o Show business, às vezes muito mais importante do que o conteúdo que ele (o Livro) pode conter.
Marcos Torres

Nu na banheira, encarando o abismo – por Lars Iyer

Nu na banheira, encarando o abismo – por Lars Iyer*

* Leia aqui a entrevista com o autor para o Blog do IMS.

MONTANHA ABAIXO
Num tempo muito, muito distante, os escritores eram como deuses e viviam nas montanhas. Eram ou eremitas desamparados ou aristocráticos lunáticos e escreviam somente para comunicar-se com os mortos ou com os não nascidos – ou com ninguém. Nunca tinham ouvido falar do mercado, eram enigmáticos e antissociais. Apesar de possivelmente lamentarem sua vida – marcada pela solidão e pela tristeza –, viveram e respiraram o reino sagrado da literatura. Escreveram drama, poesia, filosofia e tragédia, e cada forma era mais devastadora que a outra. Seus livros – quando os escreviam – atingiam o público postumamente e por meio dos caminhos mais tortuosos. Era difícil encarar seus pensamentos e histórias, como os ossos de um animal que deixou de existir.

Mais tarde, surgiu outro tipo de escritores, aquele que morava nas florestas abaixo das montanhas. Apesar de ainda sonhar com as alturas, precisava viver nos limites da floresta, mais perto da cidade, onde de vez em quando se arriscava a dar uma volta na praça. Ele reunia multidões, atiçava as mentes, causava escândalo, tomava parte na política, e em duelos, e instigava revoluções. Às vezes, partia para longas viagens de volta às montanhas, e, quando retornava, o povo estremecia com suas novas declarações. Os escritores haviam se tornado heróis: afortunados, ousados e faustosos. E alguns dos indolentes ao redor da praça começaram a pensar: “Também sou assim! Posso tentar fazer igual.”

Em pouco tempo, escritores começaram a morar em apartamentos na cidade e arrumaram empregos – na verdade, cidades inteiras eram estabelecidas e ocupadas por escritores. Pontificavam sobre qualquer assunto debaixo do sol, davam entrevistas e publicavam na editora local, a St. Mountain Books. Alguns até conseguiam viver da venda de seus livros e, quando esta minguava, ensinavam sobre a escrita no Olympia City College; e quando a faculdade deixava de empregar na área de humanidades, escreviam suas memórias sobre “a vida na montanha”. Tornaram-se astutos em publicidade, pois ficou evidente que a indústria de publicações era um braço da indústria de publicidade, e os mais espertos trabalhavam primeiro em propaganda, um bom local para treinar o ofício. Os escritores começaram então a superar o público em número, e passou a ficar claro que o público era só uma alucinação, no final das contas – assim como a importância da escrita era, sobretudo, um delírio.
Hoje, você se senta diante da escrivaninha, sonhando com literatura, passando os olhos pela página “romance” na Wikipedia, enquanto come salgadinhos e assiste a vídeos de gatos e cachorros no celular. Atualiza seu blog e tuíta as coisas mais profundas que consegue pensar para tuitar, labuta em um comentário sobre um trending topic, tentando torná-lo significativo. Sussurra nomes como um devoto: Kafka, Lautréamont, Bataille, Duras, na esperança de invocar o espírito de algo que mal entende, algo ilógico e obsoleto e que, ainda assim, lhe causa uma preocupação diária. E se pega rindo, a despeito de si próprio, rindo, impotente, rindo de si mesmo, à beira das lágrimas. Você clica em “novo documento” e fica lá, tremendo, olhando fixo para a tela do computador, imaginando que diabos deve escrever agora.

A MARIONETE CADÁVER

Dizer que a literatura está morta é, ao mesmo tempo, empiricamente falso e intuitivamente verdadeiro. Segundo a maior parte dos indicadores estatísticos, o prognóstico é positivo. Existem mais leitores e escritores do que nunca. A ascensão da internet marcou também, de certo modo, a ascensão de uma profunda cultura letrada. É mais provável que mandemos mensagens em vez de falar com o outro. Mais que nunca, estamos propensos a comentar ou escrever em vez de assistir ou ouvir. É constantemente citado o fato de haver mais graduados em programas de escrita do que pessoas vivas na Londres da época de Shakespeare. Como Gabriel Zaid escreve em Livros demais!, a proliferação exponencial de autoria significa que, em breve, o número de livros publicados irá eclipsar a população – haverá mais livros que o total de pessoas que já viveram na Terra. Temos bibliotecas no telefone, livros (em circulação ou não) acessíveis ao toque de um dedo. A poderosa Amazon, o feed infinito, a interminável agregação de dados, a sabedoria Wiki, as recomendações, os “curtir”, as listas, a crítica, os comentários. Vivemos em um inaudito mundo de palavras.

E ainda assim… em outro sentido, por outros critérios, a literatura é um cadáver que já esfriou. Sabemos intuitivamente que essa é a verdade – sentimos, suspeitamos, tememos e admitimos. O sonho dissipou-se, nossa fé e nossa reverência desapareceram, nossa crença na literatura ruiu. Em algum momento dos anos 1960, o grande rio da cultura, a tradição literária, o cânone de obras grandiosas começaram a entrelaçar-se e dividir-se em uma miríade de afluentes, fluindo lentamente nas planícies do delta cultural. Em uma cultura sem verticalidade, a literatura sobrevive como uma cartilha para o efeito de realidade, 1 ou como um diploma menos importante nas recém-privatizadas universidades. O que era literatura? Era a literatura de Diderot, Rimbaud, Walser, Gógol, Hamsun, Bataille e, acima de tudo, a de Kafka: revolucionária e trágica, profética e solitária, póstuma, incompatível, radical e paradoxal, uma morada para oráculos e outsiders, era desafiadora e patética, buscava romper e alterar, descrever, sim, mas, ao descrever, despedaçar, era estar de fora da cultura olhando para dentro, e de dentro da cultura olhando para fora. Obras dessa natureza, desse espírito, não existem mais. Ou melhor, ainda existem, mas somente como uma paródia do antigo formato. A literatura tornou-se uma pantomima de si mesma, e seu significado cultural sofreu uma hiperinflação, com suas unidades infinitesimais compradas e vendidas como ações ridiculamente baratas. Qual a causa desse grande declínio? Podemos apontar o desaparecimento das antigas classes e das estruturas de poder. O declínio da Igreja, da aristocracia, da burguesia destruiu esses grandes antagonistas do empreendimento modernista. Como a pomba de Kant – em voo livre, cortando o ar –, o escritor precisa sentir uma espécie de resistência por parte da literatura, necessita trabalhar contra algo enquanto luta por algo. E contra o que se deve trabalhar, já que não existe mais um antagonista? Podemos falar em globalização, na incorporação sofrida por todo planeta, tornando-se um só mercado global, cujo efeito é o enfraquecimento dos modelos culturais do passado e das literaturas nacionais. Presenciamos a ascensão do indivíduo a um lugar onde a própria idiossincrasia tornou-se um lugar-comum, onde o eu, a alma, o coração e a mente são jargões demográficos. Não existe sequer uma tradição a ser combatida – nenhum agon ou autoria que associamos aos escritores do passado. Podemos apontar o populismo da cultura contemporânea, a dissolução das antigas barreiras entre alta e baixa cultura, e também o enfraquecimento de nossas suspeitas em relação ao mercado. Os escritores trabalham agora lado a lado com o capitalismo, em vez de se armarem contra ele. Você não é nada, a menos que venda, que seu nome seja conhecido, a menos que grupos de admiradores compareçam em suas sessões de autógrafos. Podemos apontar também a banalidade das democracias liberais, que toleram tudo, incorporam tudo; nosso sistema político não permite nenhuma licença poética. A arte, certa vez, lidou com a oposição, mas agora é consumida pelo aparato cultural, e a própria seriedade reduziu-se a uma espécie de kitsch para as gerações x, y e z. Os assuntos a serem tratados com seriedade não foram esgotados – a atmosfera ferve, as reservas de água secam, a dinâmica política desafia a imaginação para autorizar a catástrofe –, mas os meios literários para registrar a tragédia se esgotaram. A globalização achatou a literatura em um milhão de nichos de mercado, e a prosa tornou-se outro produto: deleitável, notável, janota, laborioso, respeitado, mas sempre pequeno. Nenhum poema fomentará revolução, nenhum romance mudará a realidade – não mais.

A história da literatura é como um som em uma câmara de eco, que fica mais fraco a cada reiteração. Ou, para usar outra metáfora, pode ser dito que a literatura era, no final das contas, um recurso não renovável – como o petróleo, a água – que foi drenado e consumido a cada nova manifestação. Se a história da literatura é a história de novas ideias sobre o que a literatura pode ser, então chegamos a um ponto em que o modernismo e o pós-modernismo encontraram o poço seco. O pós-modernismo – que certamente é apenas o modernismo com um nome mais desesperado – deu a cartada final: tudo está disponível, e nada é surpreendente. No passado, cada grande frase continha um manifesto, e cada vida literária propunha uma heterodoxia; agora tudo se resume a xerox, notas de rodapé, encenação. Até a originalidade não tem mais condição de nos surpreender. Presenciamos tantas jogadas formais e estilísticas que até algo original, em todas as suas partes constituintes, contém a metaqualidade da inovação e, paradoxalmente, é instantaneamente reconhecível.

Alguém pode até tocar a antiga trombeta, clamando por um retorno às antigas formas, exigindo que a cultura retorne à sua carruagem e que restaure a importância da autoria literária, mas suas grandiosas demandas são percebidas com dúvida, escárnio, ou não são percebidas. Os “clássicos”, da antiguidade até o presente, são todos apresentações rotineiras, como O quebra–nozes no Natal. O prestígio literário existe apenas de maneira litúrgica; tão singular quanto uma freira no metrô. Quem, a não ser o mais pomposo entre os escritores da terceira onda,2 consegue levar-se a sério como autor? Quem pode sonhar em arquivar seus e-mails e tuítes para uma grata posteridade? A reclusão de Blanchot tornou-se impossível, bem como o exílio de Rimbaud e a morte precoce de Radiguet. Ninguém mais é rejeitado ou ignorado, não quando todos são publicados instantaneamente, sem qualquer esforço ou prudência. A autoria evaporou e foi substituída por uma legião de operários das teclas, caminhando lado a lado com publicitários e desenvolvedores de aplicativos.

É possível argumentar que deveríamos ser gratos a essa nova ordem. Não é bom, no final das contas, emergir de seu quintal como um romancista incipiente? Para que os outros possam lê-lo: que surpresa! As pessoas ainda leem ficção: da mesma forma, uma surpresa. Seus amigos e sua família também gostam da ideia. Então você publicou um romance! As pessoas ainda os leem? Mas que ótimo! Para seu círculo de amigos, o fato de ter publicado um romance é mais importante que tudo o que ele possa conter. O fato de que seu nome aparecerá numa pesquisa do Google junto de algo mais que suas fotos, nu na banheira, já é alguma coisa. Então o prestígio da autoria dá lugar ao prestígio de um tipo efêmero de carreirismo literário, aquele que é rapidamente esquecido.

O que, então, é tão terrível? Os estábulos do mercado literário fornecem um fascinante falatório, um ruído branco para uma existência bem ajustada. Que todos os tipos de flores desabrochem3 etc. Talvez a morte da literatura marque o fim de certa necessidade. Talvez devamos desistir de seu fantasma. Afinal, para que precisamos do espectro pantomímico do poète maudit, a perniciosa sombra de Rimbaud ou Lautréamont com sua garrafa de absinto e seus olhos injetados? Para os pragmáticos, o fim da literatura é simplesmente o fim de um modelo melodramático, de uma falsa esperança que partiu, bem como a psicanálise, o marxismo, o punk rock e a filosofia. Mas, para os menos pragmáticos, percebe-se – experiencia-se – o que foi perdido. Sem literatura, perdemos a tragédia e a revolução, e essas são as duas modalidades da esperança. E, quando a tragédia desaparece, afundamos nas trevas, em uma vida cuja vasta tristeza é ser menos que trágica. Rogamos pela tragédia, mas onde a encontraremos, se ela deu lugar à farsa? Vergonha e desprezo são agora a única resposta em leituras de manifestos literários. Todos os esforços são agora tardios, todas as tentativas são embustes. Sabemos o que queremos dizer e ouvir, mas nossos novos instrumentos não conseguem acompanhar a melodia. Não podemos tentar de novo oumake it new,4 já que ambas as ações têm se engavetado em direção à equivalência – somos como palhaços de circo que não conseguem se espremer dentro do carro. As palavras de Pessoa ecoam em nossos ouvidos: “Já que não podemos extrair beleza da vida, busquemos ao menos extrair beleza de não poder extrair beleza da vida”. Essa é a tarefa que nos cabe, nossa última e melhor chance.

DOENTE DE LITERATURA

Qualquer um que escreva está exilado da escrita, que é o país – ele próprio – onde não se é um profeta.

Maurice Blanchot

Como em qualquer morte, qualquer calamidade, nosso primeiro – e perverso – impulso é a negação. Amamos demais nossos gênios literários para admitir que seus dias estejam contados. Dançamos em volta do mastro do Bloomsday e provamos a palavra de Camus em nossas línguas como a eucaristia. Com pompa e circunstância, as premiações concedem, de modo vão, medalhas de grandeza para romances que vagamente emulam o que seria, em nossa desbotada memória, uma obra-prima. A fascinação, as ruínas, o corpo da literatura permanecem, mesmo que seu espírito tenha ido embora. Apenas poucos escritores conseguiram dominar a medonha natureza da literatura atual. Apenas poucos escritores escrevem verdadeiramente sobre as circunstâncias em que nos encontramos e sobre os obstáculos que nos confrontam. O trabalho deles é doentio e canibalístico, absurdo e desesperado, mas também, paradoxalmente, alegre e aliado à verdade. Nessas obras, há uma terrível honestidade que nos liberta. Esses são os escritores que mostram, talvez, como podemos prosseguir.

Antes de sermos curados, precisamos fazer o diagnóstico. O narrador de O mal de Montano, de Enrique Vila-Matas, sofre de um tipo de “doença literária” na qual vivencia o mundo somente pelo conteúdo dos livros que leu, escritos pelos grandes nomes da história da literatura. Ele está condenado a entender a si mesmo, e tudo o mais à sua volta, por meio da vida e da obra dos autores pelos quais é obcecado. O motivo que o faz escrever O mal de Montano é encontrar a cura – deixar a literatura por meio da literatura.

Na primeira parte do livro, uma novela autônoma, Montano visita Nantes com o intuito de libertar-se de sua doença literária, mas se vê ainda mais envolvido nela. A cidade só o faz lembrar-se de Jacques Vaché, o lendário protossurrealista, que ali nasceu e viveu, conhecido apenas por suas cartas para Breton – bem como o próprio Breton, para quem Nantes perdia somente para sua amada Paris como fonte de inspiração. E, quando Montano visita o filho na mesma cidade, só consegue ver a si mesmo como o espectro do pai de Hamlet, que finge estar furiosamente maluco.

Montano é enganado pela literatura. Desesperado, decide deixar a cidade, pega o primeiro trem e admite: “Já sei que fazer isso é muito literário, já sei, além disso, que os trens são muito literários”5 – os meios de transporte haviam sido igualmente infectados por sua doença. A subsequente viagem ao Chile não traz nenhum alívio – viajando em um pequeno avião, ele só consegue lembrar-se de Antoine de Saint-Exupéry, que entregava cartas sobrevoando as mesmas montanhas. O personagem evoca um número incontável de outros autores no caminho: Danilo Kiš, Pablo Neruda, Alejandra Pizarnik, e assim por diante.
Montano sofre, é oprimido pela literatura. O mundo inteiro parece ser um sistema de metáforas e associações literárias. Montano sequer pode pensar em suicídio, em dar um fim a tudo, já que a morte é “precisamente do que mais fala a literatura”. Não há saída – não há um curso de ação que possa seguir sem o risco de tornar-se um clichê ou um kitsch literário. Para o azar de Montano, ele não só está preso à literatura, mas a própria literatura se revela como um palco espalhafatoso.

A doença de Montano tem origem em Kafka (na realidade, quais os problemas dos últimos 100 anos que não foram antecipados por Kafka?). Segundo Montano, não existe alguém mais “doente de literatura” do que o autor nascido em Praga. “Sou feito de literatura”, afirmava Kafka, mas ele conseguiu fazer literatura a partir de sua doença. O castelo pode, como sugere o narrador de O mal de Montano, ser uma alegoria da impossibilidade de troca da exegese pela realidade, de evadir-se da doença em direção à saúde. Mas o próprio ato de criar uma alegoria a partir da doença torna-se uma espécie de literatura. Kafka, em outras palavras, ainda consegue escrever literatura, e desse modo sua doença literária é temporariamente suavizada.
O narrador de Vila-Matas tem ainda menos opções disponíveis que o de Kafka. As estruturas da religião ruíram para Kafka, deixando-o no domínio da alegoria, mas, para Vila-Matas, até as estruturas da alegoria ruíram, até a estrutura da narrativa desmoronou. Até Kafka podia contar uma história, mas essa capacidade está além do narrador de Vila-Matas. Enquanto Kafka nasceu tarde demais para a religião, todos nós nascemos tarde demais para a literatura. Enquanto o narrador de Montano revive a vida e a obra de verdadeiras lendas literárias, fica claro o quão remotas essas figuras se tornaram para nós; esses escritores cuja literatura já parecia nos manter a distância. A literatura está se apartando de nós como se afastava de nossos predecessores literários – de diaristas como Gide, que, como descrito em Montano, está sempre sonhando escrever uma obra-prima. A ideia da obra-prima – ou até o sonhar escrever uma obra-prima – faz parte do kitsch literário. É isso que o narrador quer dizer quando afirma que a própria literatura sofre do mal de Montano: a doença de Montano – ver o mundo em termos literários – é também literatura, um espelho que já não pode refletir o mundo.

“Dom Quixote representa a juventude de uma civilização: ele inventa acontecimentos; e não sabemos como escapar do assédio deles”, escreve E.M. Cioran. Inventar acontecimentos, ou até criar alegorias a partir deles, não parece mais possível. Assim como quando cuspimos contra o vento, nosso menor gesto literário voa de volta para grudar em nós. Isso, e também o esplendor virtuoso da primeira parte de O mal de Montano, pode ser engraçado. Mas, no final, torna-se exaustivo: como um crítico afirmou, “as piadas começam a se desgastar”, e o livro fica “dolorido”. É difícil não concordar que o narrador parece “ter se perdido no enredo – não que existisse algum – inteiramente”. E ainda assim, apesar do terrível impasse, Vila-Matas termina em uma nota de surpreendente provocação, até de esperança: o narrador e Robert Musil ajoelhados diante de um imenso abismo, cercados por pomposos e presunçosos escritores (“inimigos do literário”) que parabenizam uns aos outros em um grotesco festival literário. “É o ar do tempo”, diz o narrador com pesar, “ameaçam o espírito”. Mas Musil o contradiz: “Praga é intocável. […] É um círculo encantado, com Praga nunca puderam, com Praga nunca poderão”. Para um livro cujo propósito é identificar a doença terminal da literatura, O mal de Montano termina insistindo que algo ainda persiste,

uma qualidade resoluta e secreta que não pode ser desfeita nem em tempos como os nossos.
Voltemo-nos para Thomas Bernhard, outra vítima do mal de Montano. Nada a ser feito, nenhuma saída, nada resta exceto ressaltar o fato de que não há mais nada a ser feito, e de que não há nenhuma saída. A mesma velha história contada repetidas vezes – a tentativa de achar tempo e espaço para concluir um sumário, um grande compêndio que explique tudo sobre um assunto específico, seja em relação ao ato de ouvir ou à música de Mendelssohn, em que o relato do narrador sobre os problemas intransponíveis de encarar esse projeto torna-se a própria história. Bernhard desenvolve seus temas – os ressentimentos e as frustrações da pretensa vida intelectual, a culpa e o sofrimento de viver após a autoridade austríaca, a abominação moral e as consequências do nazismo – por meio de um tema cacofônico e de variações em sua prosa. Seus grandes e reiterados saltos de consciência alongam-se até o ponto de rompimento, espiralam em um furacão de ódio e frustração. Seus livros se tornam uma espécie de redemoinho, atraindo tudo o que estiver em seu curso: profundidades hiperbólicas aparecem ao lado de banalidades mesquinhas, aforismos do Velho Mundo colidem com rabugices desmioladas, grandes denúncias desdobram-se em distrações banais. O valor de uma mala, o valor de uma vida, como cachorros sabotam um pensamento intelectual, como o café da manhã é uma espécie de agressão. Suas frases, sempre na iminência de se desfazer, não procuram apenas representar a vida – a tediosa vida comum de filósofos fracassados, cientistas fracassados, músicos fracassados e escritores fracassados vivendo sob sistemas decadentes –, e sim ordenar as forças que a encerram.

O incessante impulso de sua prosa trata de uma completa intolerância para com o fracasso, o compromisso e o ódio da impostura empertigada dos que não entendem os próprios fracassos e compromissos. Ao declarar guerra contra si mesmos, os frustrados narradores de Bernhard nunca conseguem encontrar tempo e espaço para, finalmente, escrever – e imitar seus mestres, sejam eles Schopenhauer ou Novalis, Kleist ou Goethe –, declarando guerra a uma cultura em que essa imitação se tornou impossível. Bernhard é o nome de um ralo que parece sugar e escoar tudo o que seja relativo à velha cultura, à literatura e à filosofia. Consternado, ele lamenta o suicídio da cultura, mesmo quando vomita sua cólera nos “inimigos do literário” remanescentes: os artistas patrocinados pelo Estado, sejam eles pintores, atores, escritores ou compositores, e seus jantares detestáveis, como os descritos em seu romanceÁrvores abatidas. Ele está preso a uma espécie de devaneio odioso da vida não literária, personificado pela irmã empresária socialaite, em Concrete, bem como em O náufrago, em que postula que os únicos resultados possíveis de um esforço artístico são o suicídio, a loucura e o fracasso abjeto.
É claro, a ironia de Bernhard é que, enquanto seus narradores fracassam constantemente até para começar, o autorencontrou uma forma e uma maneira de se expressar. Seus músicos podem ter abandonado a música, e seus especialistas em música podem não conseguir escrever uma linha sequer sobre o tema, mas Bernhard compôs uma canção para si mesmo. Pode ser uma sinfonia grotesca, uma valsa ridícula, risível, burlesca e desumana, mas ainda assim há algo excitante – talvez até belo – na abnegação de sua música. Mais uma vez, como na obra de Vila-Matas, somente à beira do abismo conseguimos nos lembrar do que é intocável.

Um último exemplo de literatura que confronta o seu fim e sobrevive: Os detetives selvagens, de Roberto Bolaño, trata da tentativa de criar uma vanguarda literária em 1975, e foi escrito depois que as condições para a prática vanguardista haviam sido destruídas. É um livro sobre revolução política, escrito em uma época posterior ao inevitável fracasso de tais revoluções. É um romance sobre um movimento literário avant-garde, mas que, ainda assim, resiste à conceituação e à estilização que esse tipo de movimento requer. É um romance extático e apaixonado – o próprio Bolaño o descreve como “uma carta de amor para a minha geração” –, que funciona como uma paródia aos anseios pela literatura e pela revolução. É um romance, como outros romances mais recentes, que chega tarde demais, mas que, ao contrário dos outros, encontra um caminho para tratar desse atraso. Assim, Os detetives selvagens provê outro modelo por meio do qual os escritores aspirantes podem falar, de modo apropriado, sobre nossos sonhos anacrônicos.

Os supostos heróis do livro, Ulises Lima e Arturo Belano, líderes do grupo literário chamado de “realismo visceral”, quase não aparecem em boa parte do romance. Na maioria das vezes, ouvimos sobre os dois de modo deslocado, por meio dos narradores distintos que Bolaño invoca para contar sua história. E o veredicto sobre os protagonistas nem sempre é compatível – eles têm um admirador na figura do gauche e excitável estudante de direito Madero, cujos diários brilhantemente divertidos sustentam Os detetives selvagens, mas têm também seus detratores. “Belano e Lima não eram revolucionários. Não eram escritores. Às vezes escreviam poesia, mas também não creio que fossem poetas. Eram vendedores de drogas”,6 diz um dos narradores de Bolaño. “Todo o realismo visceral era […] o pavonear demente de uma ave idiota ao luar, algo bastante vulgar e sem importância”, afirma outro. No fim das contas, eles seguem para “a hecatombe ou o abismo”, como enxergam o mundo, ainda tentando alcançar uma postura literária e política em uma época em que a literatura e a política já tinham ido embora. “Lutamos por partidos que, se tivessem saído vitoriosos, teriam nos mandado imediatamente para um campo de trabalhos forçados”, diz Bolaño sobre sua geração. “Lutamos e vertemos nossa generosidade em prol de um ideal que estava morto há mais de 50 anos.”7

Dedicar-se conscientemente a um ideal morto – essa é a característica que permeia Os detetives selvagens. O insightde Bolaño – e ele é, ao mesmo tempo, inquietante e libertador – é que o único assunto que resta à escrita é o epílogoda literatura: a história das pessoas que perseguem a literatura, esfolando os joelhos nos rastros de sua passagem. E isso não é apenas um embuste metaliterário ou solipsismo; é encarar as coisas de frente. Vivemos em uma cultura em que milhões de escritores imitam os grandes moldes literários que tanto adoram – apenas vagamente conscientes do quanto regurgitam kitsch. Todos sabemos que Liberdade8 não pode ser Flaubert, e ainda assim não conseguimos compreender exatamente por que essa porta está fechada para nós. A cada ano, vemos estilos mortos – realismos, modernismos, novos jornalismos, divertidos pós-modernismos – apresentados como a última moda, como algo retrô, como uma epidemia. Está na hora de a literatura admitir o próprio fim em vez de brincar de marionete com seu cadáver. Devemos falar abertamente sobre a farsa de uma cultura que sonha com coisas impossíveis de serem criadas, pois essa farsa é nossa tragédia. Devemos encarar a melancolia e o humor amargo de nossa situação. Por qual outra razão um dos narradores de Bolaño desenharia anões com pênis gigantes enquanto aguarda em uma cela de prisão israelense, ou Madero faria seus companheiros brincarem de adivinhações com desenhos, reproduzidos nas últimas páginas de Os detetives selvagens, enquanto se aproximam do fim de sua busca por Cesárea Tinajero? Esses são os comportamentos de pessoas vivendo após a literatura. Mais uma vez, como em Cervantes, a narrativa mais atrativa é sobre o papel da literatura em nossa vida, exceto no cenário contemporâneo, que é o papel do fogo-fátuo sobre o pântano, do fantasma arrastando correntes, da entidade derrotada que hipnotiza uma legião de idiotas: pseudorromancistas, pseudorrevolucionários, críticos, professores de filosofia, editores de blogs de literatura, assinantes de revistas e pseudointelectuais – todos nós.

O QUE ESCREVER NO DESPERTAR
Existe esperança em abundância, esperança infinita, mas não para nós.
Kafka

Então aqui estamos, deste lado da montanha, com saudades dos altos platôs castigados pelas tempestades onde nossos ancestrais escritores um dia realizaram sua mágica, mas cientes de que vivemos nas planícies. Aqui estamos no fim da literatura e da cultura, despojados, desolados, perplexos. Somos crianças vagando com botas antigas. Talvez até mesmo Bernhard e Bolaño sejam grandes demais para imitarmos! Devemos estudar os perversos rabiscos de David Shrigley e Ivan Brunetti. A própria escolha de instrumentos mostra como eles abraçaram sua sorte. Devemos desconectar os computadores, colocar os livros na varanda e esquecer que aprendemos a ler e a nos importar. Mas, para aqueles que não conseguem escapar da necessidade de rabiscar e digitar, aqui estão algumas sugestões.

Utilize uma clareza não literária. Sabe-se que o jogo acabou, que está tudo terminado. O estilo de Os detetives selvagens é notavelmente não literário, quase deselegante, apesar de todo o virtuosístico desassossego de suas vozes narrativas. O livro tem uma “retidão chocante”. Mesmo Bernhard, com todas as suas convoluções gramaticais, escreve, por fim, com uma espécie de obviedade patética – não complica nem adorna demais, em vez disso vomita suas queixas. O abismo necessita da clara constância de um testemunho, da sobriedade de uma testemunha no dia seguinte, para lembrar-se do que ocorreu antes. A literatura não é mais o objeto em si, e sim o objeto desaparecido.

Rejeite métodos encerrados, rejeite obras-primas. O anseio de criar obras-primas é uma espécie de necrofilia. A escrita deve estar aberta a todos os lados da vida para que seu esboço – a vida melancólica e farsesca – possa estar presente, saqueando suas páginas. Vila-Matas afirma ser necessário, para qualquer um que escreva um texto ficcional, mostrar a própria mão, permitir que uma imagem de si mesmo apareça. Mas é uma imagem da vida cômicaque mostra a própria mão nessa literatura que vem após a literatura. O autor deve desistir de macaquear o gênio – em vez disso, deve apresentar o autor como um macaco, como um idiota. Não tenha a arrogância de ser o comediante. Você é o cara sério nessa farsa; o universo é o cara engraçado. Então não seja bobo, gracioso, piadista ou recatado: permita a hilaridade, um riso doloroso que purifica e que divide em dois o corpo e o coração. Siga sua própria tolice como pegadas na areia.

Escreva sobre este mundo, independentemente do assunto sobre o qual esteja escrevendo, escreva sobre um mundo dominado por sonhos mortos. Ressalte a ausência de esperança, crença, compromisso ou seriedade elevada. Assinale o passado que nos arruinou e o futuro que nos destruirá. Escreva sobre um tipo de esperança que um dia foi possível, como a literatura, a política, a vida, mas que não é mais possível para nós.
Deixe claro seu sentimento de impostura. Você não é um autor, não no antigo sentido da palavra. Você realmente não escreveu um livro, não um livro de verdade. Você não faz parte de nenhuma tradição, movimento ou vanguarda. Não há nenhum prêmio para você na literatura, claro que não, nada para sua pompa insensata. Além disso,pouquíssimas pessoas estão lendo de verdade: atente para esse fato também. Ninguém está lendo, idiota! Existem mais romancistas do que leitores. Existem livros demais…
Dê vulto à sua melancolia. Deixe claro que o fim está próximo. A festa acabou. As estrelas estão partindo, e você e sua estupidez são indiferentes ao negrume do céu. Você está junto dos personagens de Bolaño, no final de sua busca, perdido no deserto de Sonora, no fim de todas as buscas. Está rabiscando desenhos estúpidos para matar o tempo no deserto. E é esse o conjunto de sua obra: rabiscar desenhos estúpidos para matar o tempo no deserto.
Não seja generoso, nem gentil. Ridicularize a si mesmo e o que você faz. Ataque a arte, como canibal que é. Lembre que só quando as coisas estão mortas, bicadas por um milhão de anos de corvos, roídas por chacais, descartadas e esquecidas, podemos descobrir o último pedaço de osso intacto.

LARS IYER (1970) é professor da universidade de Newcastle upon Tyne, na Inglaterra. É autor de dois livros sobre Maurice Blanchot (Blanchot’s Communism e Blanchot’s Vigilance) e dos romances Spurious e Dogma, todos inéditos no Brasil. Este ensaio foi publicado originalmente em novembro de 2011, na The White Review.
Tradução de Thiago Lins

NOTAS
1. Referência ao termo cunhado, em 1968, por Roland Barthes. [N. do T.]
2. Termo cunhado por Alvin Toffler, em livro homônimo, para tratar da
chamada “era da informação”. [N. do T.]
3. “Desabrochar de Cem Flores” foi um período na história da República Popular da China (1956-1957) em que era incentivada a expressão das mais variadas escolas de pensamento. [N. do T.]
4. Lema do poeta modernista Ezra Pound (1885-1972) que também batiza um de seus livros de ensaios. [N. do T.]
5. Tradução de Celso Mauro Paciornik. São Paulo: Cosac Naify, 2005. [N. do T.]
6. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. [N. do T.]
7. Trechos do discurso que Bolaño proferiu ao receber o Prêmio Rômulo Gallegos, em Caracas, 1999. [N. do E.]
8. Referência ao romance de Jonathan Franzen. Tradução de Sergio Flaksman. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. [N. do T.]

Um dos destaques da revista serrote #12 é o manifesto Nu na banheira, encarando o abismo, no qual Lars Iyer discute o tão alardeado “fim da literatura”, tomando como paradigma as obras de três autores contemporâneos: Roberto Bolaño, Thomas Bernhard e Enrique Vila-Matas. Lars Iyer, professor de filosofia na Newcastle University e escritor, é também autor da trilogia de romances Spurious (2011),Dogma (2012) e Exodus (previsto para 2013), e de dois livros acerca do filósofo francês Maurice Blanchot. Leia abaixo a entrevista que Iyer cedeu com exclusividade ao Blog do IMS:

1) Além de ensaísta, você também é um ficcionista. O seu manifesto traz alguma relação com a sua obra de romancista – e você acha que pode explicar a sua abordagem à escrita ficcional?

Às vezes, é dizendo coisas bobas e simples que você nunca se permitiria dizer que você consegue falar algo valioso. Tentei comunicar algo simples, algo bobo, no meu manifesto – algo que eu sentia com muita intensidade, e que me perguntei se outros também sentiam. Quanto aos meus romances… sempre quis alcançar o tipo de tolice da qual fala Beckett em sua única entrevista: “Inventei Molloy e o resto no dia em que entendi como fui tolo. Comecei, então, a escrever as coisas que sentia”… Trata-se de uma tolice incrivelmente favorável, como você há de concordar…

Michelet escreveu, em algum lugar, de ser um “elo do tempo”; de criar uma abertura entre o passado e o presente e manter essa relação, apesar da tendência a esquecer e seguir adiante. Tanto o meu manifesto como os meus romances tentam evidenciar a dificuldade de manter tal elo entre passado e presente, entre o capitalismo neoliberal e o modernismo europeu. Para mim, o neoliberalismo nos privou das condições sob as quais certa literatura – especialmente a do modernismo – floresceu. As vanguardas desapareceram porque não há mais ninguém em específico para ofender. A ficção literária segue viva, mas se tornou, em grande parte, uma espécie de kitsch, dependendo das maneiras mais esquemáticas de apresentar personagem, enredo etc. – dependendo de um “realismo”, um sistema padronizado de representação, que se encaixa nos modelos genéricos de gosto dos quais dependem a publicidade e o marketing.
“Não foi sempre assim?”, você pode perguntar. Não houve, sempre, boa e má literatura? Não existem ainda autores que valem a pena ler? Não se publicam mais livros notáveis todos os anos? Por que falar de “literatura” de modo geral? Por que não “literaturas”? A ficção literária deste país ou daquele? A ficção literária que fala desta minoria ou daquela?
Que absurdo pensar que “literatura”, enquanto palavra, possa significar algo que possa ser deixado para trás! A literatura não sobreviveu a todas as supostas mortes?

Andrew Gallix distingue, de forma sugestiva, entre dois tipos de retardamento. Já há um retardamento presente em Dom Quixote: o romance enquanto forma “decaída”, que surge a partir de outras formas mais antigas. E, então, há o sonho moderno e romântico do “Absoluto Literário”, que expressa esse retardamento a respeito de uma obra de arte total – como a concepção que Mallarmé criou de O Livro, por exemplo. Tal retardamento, para mim, se sustenta especialmente para as vanguardas modernistas que buscaram, de certa forma, ligar a arte à política, que buscaram mudar a vida, mudar o mundo. Como argumento em meu manifesto, as condições de existência de tais vanguardas sumiram, e junto delas, desapareceu todo o sonho de uma Literatura com L maiúsculo.
“Certo!”, você pode dizer. Não precisamos mais desses velhos idealismos! Marxismos e anarquismos aposentados! Experimentações que não levam a lugar algum e vanguardismo! A literatura não pode mudar o mundo – e que absurdo pensar algo diferente disso! As artes literárias, no fim das contas, não têm nada a ver com política! A história acabou, e, assim, também, um certo sonho do que a literatura poderia ser! Somos mais modestos agora, você pode argumentar. Esperamos menos da vida, e menos da literatura.
Freud contrastou o luto com a melancolia. Você pode “lidar” com o luto, afirma, reintegrando as perdas que você teve em um novo ser. O luto pelo modernismo pode ser absorvido por qualquer período que estejamos vivendo agora – pós-modernismo ou pós-pós-modernismo. Pode ser estudado, dissecado, podem fazer perfis dos autores nos suplementos dominicais. A sua memória pode ser reativada – por que as técnicas modernistas não podem guiar o romance moderno? A ficção literária contemporânea não pode incorporar as lições do passado?
Mas a melancolia, de acordo com Freud, continua por tempo indefinido, e não oferece promessas de uma nova integração. E sinto melancolia em nossa relação com o modernismo. O modernismo é mudo, de certo modo. Ele não se comunica conosco. O elo entre passado e presente foi rompido. A literatura sobrevive hoje na ficção literária, o que significa que a literatura não sobrevive mais, ou sobrevive sob apagamento. O “realismo” da ficção literária se adequa ao que Mark Fisher chamou de “realismo capitalista”: a noção de que o nosso presente neoliberal é o resultado natural da evolução da sociedade, que é eterno, que representa a única maneira que o mundo poderia ser.

2) Você faz uma defesa sólida dos artifícios metaliterários de Vila-Matas em seu ensaio; de acordo com o manifesto, ao escrever sobre a impossibilidade da escrita, o autor catalão está criando uma das únicas formas possíveis de literatura hoje em dia. No entanto, você não acha que este tipo de artifício se tornará cansativo – e Vila-Matas não estaria destinado a se repetir?
Escrever sobre a impossiblidade de escrever: parece tão estéril e acadêmico! E também parece um lugar-comum: não foi isso que Blanchot escreveu em um prefácio a Faux Pas? Não foi isso que Beckett disse a Duthuit nas suas conversas? Mas há uma diferença crucial entre escrever sobre a impossibilidade de escrever nos anos 40 e hoje em dia. Resumidamente: a experiência modernista da impossibilidade de escrever ainda é enquadrada e validada como a impossibilidade de fazer algo que valha a pena; mas essa época passou, como argumento em meu manifesto. Montano, no romance de Vila-Matas, sente a experiência de impossibilidade, mas o que o que sente não é a impossibilidade de fazer algo que valha a pena, mas a impossibilidade da experiência de impossibilidade de algo que valha a pena! Montano tem uma consciência apenas parcial do quão ridículo é isso. Ele quaseentende. Mas, para nós, leitores, fica muito claro: a experiência de melancolia literária de Montano é de gargalhar, ainda que nós, também, compartilhemos parte da experiência.
Claro, não estou dizendo que todos nós deveríamos escrever como Vila-Matas. Mas ele nos mostrou a situação que o escritor de ficção literária herdou, e a tarefa que esta situação nos dá: a de registrar o que aconteceu com a literatura no próprio fazer literário; a tarefa de escrever sem ingenuidade.
Será que Vila-Matas se repetirá? Ele não se repete nos livros que foram traduzidos ao inglês que li. Será que seus artifícios se tornarão cansativos? Não enquanto discutirem o nosso relacionamento com o modernismo da maneira instigante como são utilizados.

3) Scott Esposito, em resposta ao seu ensaio, afirma que esse tipo de discurso pode muito bem estar apenas projetando suas próprias limitações. Como você responde a esta declaração?
O ensaio de Esposito é interessante, mas discordo da maneira como ele enquadra o meu argumento: não reclamo da fragmentação do romance; não procuro uma obra que supere a fragmentação da nossa civilização: longe disso! E discordo com a visão de Esposito acerca de Os detetives selvagens, de Roberto Bolaño: eu não acho que ele “parece vangloriar-se de uma marginalização premeditada como meio de ganhar o mundo”. O romance de Bolaño, assim como o de Vila-Matas, ri da impossibilidade da literatura da nossa época. Ri da sua impostura. E da impostura de começar de novo – de escrever, continuar escrevendo, entre as ruínas… Mostra uma melancolia exuberante que está muito distante da “resignação ressequida” que Esposito enxerga em meu manifesto…

4) Apesar de você formar um elo entre Roberto Bolaño, Enrique Vila-Matas e Thomas Bernhard em seu ensaio, os três são romancistas muito diferentes. A ficção de Bolaño é altamente política, e a crítica que faz da literatura está muito relacionada ao fato de que a arte (e a literatura) não tiveram efeitos práticos em impedir ditaduras e a violência. Você acha que a abordagem feita por Bolaño ao tema do fim da literatura é muito diferente da de Vila-Matas e Bernhard?
Qual é a ligação entre estes autores? Um distanciamento da literatura como algo possível para “nós”. Um distanciamento de certo tipo de modernismo, o que aparece de forma diferente em cada autor.
Em época de revolução, Marx afirma, os revolucionários invocam os fantasmas do passado para ajudá-los. Guarda-roupas são atacados de surpresa, e experimentam nomes, slogans e uniformes para ver se o tamanho serve. O perigo é que os revolucionários repetem o que já aconteceu enquanto farsa, apenas parodiando o que passou. Para mim, os três autores que menciono fazem mais do que apenas parodiar glórias do passado. Eles entendem que o gesto literário em si é paródico.
Bolaño, talvez mais do que Vila-Matas e Bernhard, põe em evidência o grotesco desta paródia. Os real-visceralistas não parecem ser mais do que uma farsa, quando colocados ao lado dos horrores do Chile de Pinochet, ou do laboratório do neoliberalismo. Os seus objetivos políticos parecem especialmente patéticos. Mas há uma glória nesta paródia. Bolaño não é o Último Homem literário. A história não acabou ainda para ele. Em Os detetives selvagens, talvez mais do que na obra de Vila-Matas e de Bernhard, a melancolia floresce nesse tipo de promessa. A disjunção entre modernismo e o presente, entre Literatura com L maiúsculo e Política com P maiúsculo, se torna insuportável. Para mim, essa insuportabilidade permite que a Literatura apareça em sua impossibilidade, como uma espécie de presença ausente, como uma espécie de desaparecimento, e, junto dela, o legado desaparecido do Modernismo.
Deixe-me colocar isso em termos programáticos: sem uma relação com o modernismo, não há futuro. Sem saber que a relação com o modernismo é completamente impossível, não há futuro. Sem saberque não há futuro, não há futuro.

O andarilho – Capa

Publicado: abril 1, 2013 em Conto

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Lançamento de O andarilho

SALVADOR

Local: Livraria LDM-Multicampi – Espaço Itaú de Cinema Glauber Rocha
Data: Dia 23 de abril de 2013 das 19:00 às 21:00

Sinopse – O andarilho

A história conta a vida de um moço, Thoth Fênix, que já vai beirando os quarenta anos de idade e, da noite para o dia, toma uma séria decisão: Desconectar-se por alguns momentos do mundo dos negócios, do trabalho, das tarefas profissionais e intelectuais; ausentar-se do barulho da cidade grande, para seguir como um andarilho. Nessas suas andanças mergulha profundamente em um mundo de cores, texturas, aromas; um mundo selvagem, primitivo, fascinante; em lugares pouco explorados onde todos gostariam de ir pelo menos uma vez na vida; outros lugares talvez nem tanto e, outros ainda, onde, talvez, não se faça muita questão de estar. Então, ele quer saber como ainda vivem as pessoas de vida simples, que moram em lugares primitivos, lugares selvagens, no meio da mata, na beira de um rio, em lugares praticamente inabitados ou inóspitos. Thoth parece um desses sujeitos meio estranho. Parece meio árabe, meio asiático, meio africano, meio europeu, meio índio, meio negro, meio branco, meio mestiço. Sua origem parece não ter terreno. Um sujeito desgovernado vivendo numa terra de ninguém num lugar sem endereço.

Esta é a história de um andarilho e sua observação ao visitar culturas aparentemente díspares. É o choque do desconhecido e do incompreendido; trata-se de um sujeito vivendo com a constante dúvida se algum dia vai encontrar um lugar no mundo que possa viver com o mínimo de sobrevivência. Um moribundo tentando encontrar um lugar sossegado para viver com sua misantropia. Mas há uma sensação de insegurança em toda parte.

Este livro faz parte de uma trilogia “Impressões Temporárias” (O andarilho (2013), Cores da Indochina (2014/15), Áurea Negra (2015/16)), que narra a observação de um personagem visitando culturas aparentemente díspares: Brasil, Tailândia/Indochina e Serra Leoa, entre outras culturas. Os dois livros seguintes vão se processar bem mais adiante no desenrolar dos acontecimentos.

Marcos Torres

Postarei novas informações em tempo oportuno, tanto neste ambiente quanto em minha página pessoal no Facebook:

Apresentação