Águas rasas: o que a internet está fazendo com nossos cérebros
Por Nicholas Carr (W.W. Norton, 2010)
Aeroplanos luminosos
Paul La Farge
(Farrar, Strauss and Giroux, 2011)
Jesse Miller
Um romance não pode fazer torradas. Um romance não pode cortar cabelo. Um romance não pode fazer a cama ou caçar coelhos para assar. Não pode desentupir o vaso sanitário. Não pode chamar a polícia. Não pode ligar o aquecimento. Pode servir por alguns minutos como um chapéu protegendo minha cabeça da chuva, mas não por muito tempo, pois não pode evitar que eu fique encharcado. Não pode pagar o aluguel (não ao menos para muitas pessoas). Mas David Foster Wallace diz:”Há um certo toque mágico nas coisas que a ficção faz pela gente”.
A pergunta sobre o que exatamente é um romance e a literatura em geral pode assombrar muitos escritores e poetas que escolheram devotar a vida deles a martelar palavras e frases. William Carlos Williams escreveu que um poema é uma máquina feita de palavras. Uma máquina não apenas pelo modo como um texto é construído, calibrado, testado e refinado durante o processo de escrita, mas também porque um texto faz alguma coisa, tem o potencial de provocar mudanças, de fazer as coisas acontecerem. Para o teórico Nicholas Carr, literatura tem uma tarefa especial para nós na era da internet, do hipertexto, da hipermídia e da hiperatividade. Tal como descrito em seu livro “Águas rasas: o que a internet está fazendo com nossos cérebros”, a internet está mudando não apenas o que lemos e o modo como lemos, mas também o modo como pensamos e também todo o cenário psicológico de nossos cérebros. Na sua opinião, o meio não é apenas a mensagem, é a mensagem que pressiona os contornos de nossa mente, alterando o modo como podemos, ou não, pensar e agir. De um lado, há a internet moldando-nos para a superficialidade, tornando-nos distraídos, seres primitivos; de outro, os romances tentando desviar-nos de nossos impulsos, para que possamos ler pausadamente, fazer conexões e pensar com profundidade.
Acho esse argumento convincente embora não inteiramente surpreendente: O mantra que ouço é: “neurônios que trabalham juntos, permanecem unidos”. (Repita comigo: “neurônicos que trabalham juntos, permanecem unidos”). Funciona e se você repete algumas vezes você se lembrará disso, eletricidade iluminará suas sinapses, novos caminhos serão estabelecidos, como agora sabemos, (“neurônios que trabalham juntos, permanecem unidos”). De algum modo, é libertador reconhecer a neuroplasticidade dos cérebros, admitir que humanos são, na origem de sua individualidade, maleáveis. Mas também é assustador. Particularmente, como adverte Carr, quando não estamos no controle dessa mudança, quando nossas tecnologias, nossas criações, estão nos inventando e quando continuamos a confiar nessas tecnologias com pouca reflexão sobre o modo como permitimos ser remodelados. Para Carr, a internet não é tão ruim (vender essa ideia seria difícil). Nem todas as mudanças provocadas o são.
O alvo de sua reclamação é o fato de que permitimos que a internet modele-nos, fazendo com que percamos muitas coisas que nos fazem humanos:
O maior perigo que enfrentamos é que nos tornamos envolvidos com nossos computadores- como somos capazes de experimentar a vida através de símbolos vacilantes, esvaziados através de nossas telas- e começamos a perder nossa humanidade, sacrificando muitas qualidades que nos distinguiam das máquinas.
A internet oferece-nos constantes e fáceis acessos a informações de insondáveis profundidades, mas, paradoxalmente, de acordo com “Águas rasas”, achata-nos. Para Carr, a ética do consumo que a internet promove é a da distração, da clonagem e do salto, da insaciável voracidade. O que é bloqueado não é apenas a “profundidade da singularidade do eu”, mas também a “profundidade e singularidade da cultura como um todo”. Para Carr, o progresso (seja lá o que isso signifique) parece ter estacionado. Estamos experimentando, diz ele, “um retrocesso na trajetória da civilização”, o controle sobre nossos impulsos que a leitura tornou possível um dia está se desintegrando, fazendo-nos retornar ao ‘estado natural’ de nossos ancestrais.
A narrativa do declínio cognitivo de Carr é uma história relacionada com a função da literatura como uma cura de vida no mundo moderno. Se a internet nos torna menores, para Carr, a literatura pode fazer recuperar nossa profundidade e nos permitir o acesso às “mais profundas – e mais valiosas- formas de pensar de que são capazes nossos cérebros”. É pela leitura que controlamos nossos impulsos primitivos à distração e nos reabilitamos “com nossas capacidades mais humanas- razão, percepção, memória e emoção.” É através da literatura que lemos devagar, pensamos profundamente, construímos memórias e forjamos conexões intelectuais. Carr não está sozinho nesse clamor pela função da ficção. (…) Essa crença nas propriedades curativas da ficção é compartilhada por escritores contemporâneos como Gary Shteyngart e Jonathan Franzen. Este último descreve escritores como administradores que zelam pelo conceito de solidão que parece em perigo em virtude do mundo tecnológico em que vivemos. De acordo com Franzen, é através do espaço de solidão no qual escritores escrevem e leitores leem que a solidão pode ser amenizada e as verdadeiras conexões entre os seres humanos podem ser feitas. Para Franzen, a fachada de conectividade que a tecnologia moderna apresenta é meramente uma característica de sua concepção. Clicar em links e checar e-mails tornou-se um comportamento compulsivo que atiça nosso desejo de conexão, mas não o satisfaz. Falando como escritor, ele diz: “Nosso trabalho é criar livros que nos obriguem a empurrar o leitor para fora desse mundo louco na direção de um lugar calmo para dar-lhe uma experiência real”. Para Franzen ou Carr, ler um livro desenvolve as capacidades que nos tornam humanos, as habilidades de sentir empatia com outras pessoas e pensar profundamente. O declínio da leitura ‘séria’ diante da ubiquidade da tela do computador ameaça nossa humanidade.
É mesmo?
David Foster Wallace, também defendendo a escrita experimental, sugere uma função radicalmente diferente para a ficção. Começando com uma premissa similar que afirma que as pessoas hoje estão “sobrecarregadas pelo número de escolhas que precisam fazer e pelo número de coisas as mais diversas a que têm acesso”, ele sugere que o que a ficção faz é apresentar-nos “o modo como o mundo é sentido através de nossas terminações nervosas”. Mais que servir como um descanso da alienação provocada pelo mundo tecnológico em que vivemos, Wallace adverte que a ficção poderia levar-nos a “ruminar, organizar, selecionar todo tipo de informação disponível e preparar-nos para viver nesse mundo”.
Para críticos como Franzen e Carr, ler é voltar-se para dentro de si, considerando o corpo como uma concha, a mente voltada para dentro: sshhhhh, paz e silêncio, tanto silêncio que se pode ouvir o oceano. Procurando um modo de escapar da distração pela literatura, eles advogam um recuo diante da experiência contemporânea para construir uma marca de subjetividade particular rotulada pelo “Humano” e pelo “Realismo”. Em Fisiologia do romance, uma história da leitura, Nicholas Dames escreve que, para os vitorianos, o romance burguês era temido por ser considerado “um campo de treinamento para a consciência industrializada”, mais que uma fonte de refúgio ou “um antídoto para o assalto ao estímulo representado pela promessa de ascensão moderna” como Carr e Franzen asseveram.
Talvez todos estejam corretos. O que parece claro é que o tipo de existência a que esses críticos aludem e que a literatura pode preservar não é somente apresentada na ficção, que também não parece ser o único modo de compreender a existência humana. “A noção de que a realidade pode ser representada somente através de um certo tipo de atenção narrativa é um desesperado argumento dos realistas”, escreve Ben Marcus na sua defesa de formas experimentais e alternativas de ficção. A despeito de uma virada neurofisiológica que pode explanar sobre o que é uma experiência real, isso não é todo o passado, presente e futuro do romance, nem da experiência humana. Se nós não estamos capacitados para voltar a um mundo sem distração, onde poderíamos voltar a pensar demoradamente e ler profundamente com cuidado, e se aquele mundo nunca realmente existiu a não ser como uma série nostálgica do tipo “como era melhor o passado”, então talvez haja um outro modo de compreender a função da literatura contemporânea na mediação de nossa experiência do mundo.
Como as obras de Baudelaire durante o último quarto do século XIX ou Woolf que conseguiram falar das experiências contemporâneas, eu gostaria que o que está sendo escrito agora explorasse as possibilidades de viver nossa distração e nosso superconectado mundo, que mergulhasse na superficialidade e se relacionasse com as questões apresentadas pela tecnologia moderna e a sociedade contemporânea em rede.
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Aeroplanos luminosos, publicado no outono e escrito por Paul Farge, é o perfeito exemplo desse tipo de texto. Um livro de papel e capa dura tanto quanto um texto on-line imersivo, Aeroplanos luminosos não é apenas uma novela inovadora que joga com os limites da forma, mas também um campo de treinamento que nos prepara para o mundo no qual estamos mergulhados.
O romance conta a história de um jovem programador que deixa sua vida vazia em São Francisco e dirige até Tebas, uma pequena cidade de Nova Iorque, para recolher as coisas deixadas por seu pai após sua morte. Enquanto faz isso, o narrador rumina sobre a experiência de viver nos anos 90 e 00, tenta reacender um relacionamento romântico com uma amiga de infância e, ao mesmo tempo, descobre verdades perdidas sobre a morte do pai. O sentimento de estagnação e antecipação que domina tanto o narrador quanto o leitor, simbolizado pela descrição de um cartão de aniversário recebido de seu avô, assemelha-se a uma onda pronta para quebrar a frieza de seu gelo. É um sentimento que cria empatia com companheiros de um grupo de privilegiados, jovens muito bem educados. Isso é impulsionado por uma condição cultural definida por uma proliferação de oportunidades que nunca foram postas em prática, porque havia a possibilidade de constante conexão e ao mesmo tempo alienação. O que eu quero ser quando crescer? Que roupas eu quero usar? Com quem eu quero sair? Que experiências quero viver? O grande problema da vida contemporânea pode ser um problema criado pela distração não somente por muitas telas mas também por muitas oportunidades de escolha e pouco tempo e ninguém com quem conversar sobre as decisões a tomar: tendo tantas possibilidades é impossível escolher alguma. Como o narrador do romance apresenta: “aqui está tudo e ninguém contará a você o que fazer, onde ir, como começar a compreender as coisas que estão acontecendo”.
O narrador do romance encontra-se preso nesses pensamentos, atormentado pela necessidade de tomar decisões, grandes ou pequenas: se deve ou não ficar com a mulher que está grávida de seu filho, se compra ou não um sofá e uma cadeira. O menor desses atos parece ter o potencial de disparar as maiores consequências. “Tudo poderia ter acontecido de forma diferente”, ele diz, se tivesse comprado um novo móvel que tinha visto pela janela de uma loja. Talvez essa outra compra o tivesse levado ao caminho certo, na direção da felicidade e para resolver as pontas soltas de sua vida. Mas, ao invés disso, ele recua do processo de tomar decisões e permanece na passividade e na inércia: “na verdade, eu não tenho energia ou não teria para comprar móveis”. E mesmo quando se dá conta de que não é capaz de tomar decisões, sempre à espera do momento certo ou do insight perfeito, está irrefletidamente tomando decisões. No fim do romance, o personagem chega à seguinte conclusão: “ Eu vou para a cama toda a noite com a ideia de que amanhã minha vida voltará aos trilhos, mas a verdade é que minha vida estava nos trilhos quando previ isso há trinta anos.”
Aeroplanos luminosos tematiza isso não só através de seu protagonista, mas também através da experiência que fornece a seus leitores. Implora a eles, como o anônimo fracassado de Progress in Flying Machines, um livro sobre as mais recentes experiências sobre o voo humano que o narrador encontra entre as pilhas de lixo de seu avô, que definam metas e façam planos, a despeito da ameaça de fracasso. Aeroplanos luminosos é um experimento para a vida, um kit modelo para tomar decisões no qual as instruções se perderam, como se fossem pobremente traduzidas ou nunca tivessem chegado a existir. O livro dá a você a impressão de estar perdido no mundo através de uma experiência de leitura que pede que você se perca no mundo. No mapa do site do livro, La Farge escreve:
Um dos pontos principais do texto imersivo é que não há ponto de vista esclarecedor a partir do qual você possa se colocar para entender o labirinto todo…é como a vida, para saber como acontece, tem de se ir vivendo.
Quando cliquei para escolher meu próprio caminho pelo hipertexto de La Farge, tive a clara impressão de que estava sendo preparado para enfrentar as mesmas condições do protagonista em apuros do romance, navegando a complexa rede de decisões que tomamos na vida, dentro e fora da web. La Farge apresentou a novela como uma versão em pequena escala do mundo digital (e-world) aberto para o leitor refletir e explorar.
Aeroplanos luminosos interroga os limites do romance e as possibilidades futuras da publicação on-line e impressa, mas também oferece-nos uma resposta sobre o que o romance pode fazer. Como mencionei antes, David Foster Wallace afirma que a chave das características textuais da experiência das pessoas é o sentimento de estarem “sobrecarregadas pelo número de escolhas que têm de fazer e pelo numero de diferentes coisas que têm à disposição”. Talvez Aeroplanos Luminosos esteja sugerindo que um romance faz muito mais do que apenas “impor algum tipo de ordem, ou dar algum tipo de sentido” ao tipo de informação com a qual estamos sendo constantemente bombardeados. Como Wallace afirma, o romance pode capacitar-nos como leitores e nos conectar com esse mundo.
O romance, para Carr e muitos outros, é uma tecnologia que resume o que significa ser humano, os pináculos dos feitos humanos são gravados entre suas capas e não apenas representam, mas formam- neurofisiologicamente mesmo- um conceito e uma experiência do indivíduo como sólido, estável e profundo. Mas compreender um romance desse modo é esquecer toda a tradição de escritores que trabalharam contra as convenções, que acreditavam não refletir suas experiências. Agora, a tecnologia que desafia a profundidade também cria oportunidades na sua superficialidade. Num trecho sobre o hipertexto, La Farge escreve:
Só o romance foi capaz de nos ensinar como eram os indivíduos há 300 anos atrás, dando-nos um espaço para estarmos sozinhos, mas não tão sozinho-um espaço no qual se podia estar sozinho com um livro- então a ficção hipertextual pode levar-nos a tentar algo novo, identidades não-lineares, sem dissolver-nos inteiramente na rede. O romance pode dar-nos um lugar para concentrar nossa dispersão, para focarmos a distração, e, desse modo, possivelmente, compreender no que nós nos transformamos antes que a corrente nos leve.
Que diferença isso faz em relação aos clamores de David L. Ulin, que em outro ensaio recente sobre a distração e a cura da ficção, afirma que a leitura entendida como ajuda para ‘compreender e interagir com o mundo’ tem de nos ajudar a fugir da ‘trivialidade contínua’ da vida mediada pela mídia? Como, se o que literatura e experiência sugerem é que a vida é trivial? Pequenas ações, pequenas decisões. Se ficção não pode preparar um bom suflê, então, no mínimo, pode lançar-nos para fora da cama e se não pode levar-nos para fora de casa, pode levar-nos para o computador. Eu gostaria de pensar que a literatura pode levar-nos a vivenciar a experiência contemporânea e não nos manter longe dela e que ela pode nos ajudar a lidar com as experiências, grandes e pequenas, profundas e superficiais, que são as que verdadeiramente fazem nossas vidas de todos os dias.