CARTA DE INTENÇÃO

Publicado: novembro 3, 2016 em Literatura e Outras Artes

[Carta para uma Residência Artística que não aconteceu. Um outro dia quem sabe]

 Independente disso o livro foi criado dentro de outras circunstâncias. Publicação e lançamento para o segundo semestre de 2017.

CARTA DE INTENÇÃO

Contarei a vocês algumas de minhas intenções para esta residência artística. Mas posso fraquejar no correr dos dias. A vida traz coisas e momentos inesperados. Não tenho como escapar. Contarei a vocês fragmentos de vida sob os estilhaços de uma memória pequena e frágil. Tudo começou num grande casarão habitado por artes e linguagens e corações que pulsam. Na porta de entrada percebia que o sol já ia descansar do outro lado, adormecendo no oceano e ao mesmo tempo acordando do outro lado do mapa. Enquanto isso os transeuntes com passos apressados andavam nas calçadas pisando um chão de pedra, e no asfalto quente via os carros com suas buzinas enfurecidas e os semáforos apressados mudando suas cores e a geografia dos movimentos. Uma velocidade em meio ao caos urbano cuja pressa dissolve as percepções e sentidos, em meio a uma avalanche de perturbações urbanas e todas as suas ambivalências, com corpos taciturnos embora alimentando grandes esperanças como uma planta esperando a chuva. Não gosto muito das linhas desenhando as cartografias dos mapas. Tenho pouco ou quase nenhum apreço às separações das terras e dos mares. Gosto do diálogo para além dos espaços geográficos, espaciais e temporais. Sempre achei o mundo um pequeno vilarejo. Também vislumbro o mundo como uma grande aldeia global como escreveu um dia Marshall McLuham. Penso nas línguas como tons vivos e vibrantes como as cores do arco-íris, como uma grande colcha de retalhos costurada com o tecido das culturas, jamais como forças antagônicas embebidas de poder e hegemonia e com todas as suas turbulências sociais e históricas, embora tudo isso sempre esteve presente nos processos civilizatórios encravados no coração das culturas. Para encontrar-me com o desafio da surpresa e do inesperado que vão muito além de regras e modelos de vida e experiências ao atravessar este pedaço de oceano levarei pouca coisa: um lápis com ponta afiada, alguns livros para consulta e pedaços de papel velho, só depois de muito tempo é que cristalizarei estas letras numa tela brilhante, feita mais tarde por um capitalismo tardio. Tenciono desenhar o romance Cores da Indochina ao pentear os cabelos dos parágrafos ao longo de 230 a 260 páginas borradas com uma tinta negra de nankin chinês. Quão lindo é o encontro de vozes inquietas. A coragem de encarar uma aventura no lugar do “desconhecido”, em busca de uma Expressão. Não sei se passarei para o outro lado desta baía. Mas fico aqui, na esperança de atravessar este pedaço de oceano. Estou preparado. Pelo menos é o que penso. Preparado para as incertezas, o desconhecido, o novo, a surpresa, o distanciamento do caos urbano, a solidão, a troca, o compartilhamento das ideias, o encontro com as palavras como fantasmas e assombrações ao longo dos dias e das noites, na companhia do balé dessas águas intermitentes e sob este céu ora azul-turquesa, ora negro e iluminado pelas luzes desses vaga-lumes olhando-me e protegendo-me com tanta generosidade e benevolência. Precisamos avançar dentro de uma nova perspectiva para vislumbrar novos horizontes com todo nosso senso de humanidade, diante deste céu calado e mouco, esperando nossas vozes inquietas ecoarem para além de nossas experiências e representações sociais, históricas, culturais e simbólicas… O desafio está lançado. Estou disposto a aceitar.

marcos torres

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