Crônicas de Viagem – Pisando em Ouro

Publicado: junho 17, 2013 em Crônicas Urbanas

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Crônicas de Viagem – Pisando em Ouro

Ouro Preto – De 6 a 13 de junho de 2013

PISANDO EM OURO

Os apocalípticos dizem que o mundo está um verdadeiro caos e a sociedade está degenerada, enfim, que tudo está perdido dentro de um abismo sem tamanho ou explicação. É claro que isso é uma visão pretensiosa ou mesmo uma tentativa igualmente pretensiosa de unificar as opiniões e os gostos. Talvez essa visão e tentativa sejam reflexos num espelho.

Não. O mundo não é só desolação nem está um caos e tudo não parece estar perdido. Sim, há sempre um aroma a ser apreciado, um cheiro de neblina além das colinas perto do céu, passarinhos comendo no meio da relva, um gosto a ser sentido, há um sorriso doce e luminoso do outro lado da rua fazendo uma toalha de crochê com o corpo debruçado no parapeito de uma janela sem sentir o tempo passar como nos melhores dias. Escuto um silêncio tão profundo que dá para ouvir os ventos de outono vindo do leste.

Este é um lugar tão magnífico que a mais fértil imaginação do verbo deste pobre escriba não seria capaz de traduzir tamanha intensidade do Ouro que ali reluz. Este lugar desnudou os meus vícios e embalsamou todas as minhas misérias dentro de um sarcófago, para depois ser enterrado num buraco tão profundo quanto os deuses egípcios enterrados nas profundezas do Vale dos Reis, ficando lá para sempre. Este sonho e saudosismo me vencem e vêm para me libertar de todas as minhas misérias.

– Marcos, agora que estamos em alta estrada, você poderia me dizer o que achou da cidade que deixamos para trás há pouco instante?

– Hã. Ah, sim, claro, a cidade. A cidade que deixamos para trás há pouco tempo tem uma particularidade muito interessante, mas não vejo nada de muito diferente daquilo que se pode ver nas grandes capitais: cidade barulhenta, buzinas enfurecidas e um amontoado de gente se acotovelando e perambulando de um lado para o outro a todo instante; rostos enfadados; mendigos sangrando debaixo de marquises, em becos, ruas e avenidas, apilhados sobre as calçadas ou dormindo um sono injusto sob os viadutos; maltrapilhos vagando sem destino numa rua incerta como um deus esquálido, nada de novo neste céu nublado, sem explicações.

– Catedátrico, você me deixa em maus lençóis. Você poderia mudar de assunto?

– Sim, certamente.

As ladeiras daqui são íngremes…ufa!…As pernas doem muito… ufa!…As pedras são pontiagudas…ufa!…Talvez esse seja o preço para saborear outras paisagens…ufa!…parece que agora faltam poucos metros…ufa!…Até que enfim chegamos ao topo, pois já estava pensando em parar de falar e andar ao mesmo tempo, assim o desgaste é dobrado…ufa!…Chegamos!

– Veja isso, Catedrático. É uma imagem exuberante, não achas? Olha que coisa interessante e curiosa, Catedrático, como Ouro Preto parece com Ouro Preto!

– Mas, Marcos, aqui é Ouro Preto.

– Eu sei. Acha que eu tenho problemas mentais? Disse isso apenas para afirmar a singularidade deste lugar e ao mesmo tempo não deixar nenhuma brecha para suas divagações e seu excesso de comparações com outras coisas que têm do outro lado do Atlântico, e também sua mania de tudo colocar a ciência como ponto de explicação para os objetos. Este lugar pede uma contemplação mais amistosa, desnudada de outros conceitos mais polidos e sisudos. Digo isso porque, veja você, faça um teste, os especialistas elaboram milhares de páginas para falar deste lugar, vivem fazendo inúmeras comparações com outros lugares do outro lado do Atlântico (até os próprios guias e monitores repetem as mesmas coisas como papagaios), no entanto, faça uma pequena apreciação e diga: veja como é magnífica a construção daquela Torre, olhe a singularidade desta Escultura; pronto! Não conseguem sustentar dez minutos de conversa, já é o bastante para ver o tamanho do sofrimento e vai ver todo o aparato científico descer pelo ralo.

– Me diz uma coisa: Você é contra a ciência?

– Não. Pois desse modo estaria atirando no próprio pé, afinal, também somos cientistas, ou você esqueceu? Apenas proponho uma relação mais amistosa em certas ocasiões que pedem esta prosa. Em relação à ciência, vejo às vezes algo glamoroso recheado de certa veneração e submissão, como um cachorrinho balançando o rabo pedindo um osso. Acho que às vezes é preciso tirar a couraça e saborear outras paisagens. Ficam tão enfronhados neste ambiente que às vezes parece uma prisão e não conseguem ver as coisas num outro ângulo, às vezes falam certas coisas com uma profundidade tão grande que chegam a molhar os calcanhares das formigas.

– Agora que já estamos aqui no topo, Catedrático, vamos começar pela Praça Tiradentes, mas não esqueça que ainda temos muita coisa para ver ao longo desses quatro dias: além da Praça Tiradentes têm também o Museu da Inconfidência e ao lado a Igreja de N.S. das Mercês; do outro lado o Museu de Ciência; no meio desta ladeira a feira de Pedra-sabão e ao lado a Casa de Cultura; lá em cima naquela ladeira íngreme fica a Igreja de Santa Ifigênia e mais abaixo a Igreja do Padre Farias com um sino ao lado, que tocou algumas badaladas na morte de Tiradentes, também é o mesmo que foi levado para ser tocado na inauguração de Brasília; descendo a mesma ladeira fica a mina Chico Rei; atrás dessas casas fica a Casa dos Contos onde no subterrâneo fica uma senzala para relembrar os artefatos que promoviam as coisas mais escabrosas, e também um parque para mudar o tom da paisagem; por trás deste museu fica a Biblioteca Pública, e tem mais coisas entre essas ladeiras: Igreja de Jesus de Matozinhos, Igreja de São José, Igreja de N.S. do Carmo, Igreja N.S. da Conceição, Igreja N.S. do Pilar, Igreja N.S. do Rosário, Igreja São Francisco de Assis, Igreja Francisco de Paula, Capela N.S. das Dores, Capela de Nosso Senhor do Bonfim, Capela de São João Batista, Capela de São Sebastião, Capela Bom Jesus das Flores.

Ah! E o Museu do Aleijadinho!? Os Doze Profetas todos em Pedra-sabão e em tamanho natural que ficam em frente à Igreja de Bom Jesus de Matozinhos; e também a Santa Ceia e na sequência os Passos da Via-crúcis, tudo esculpido em madeira, jacarandá e pinho, 66 esculturas se é que esta memória não está me trapaceando. Esta apreciação ficará reservada para o final. E a assinatura do Aleijadinho, como saber? Um regime de autoria muito diferente deste que atualmente presenciamos, mas esta é uma prosa que ficará para mais adiante no desenrolar desses devaneios.

– Dizem também que a viagem de Maria-fumaça entre Ouro Preto e Mariana é uma beleza, assim como a visita à Mina da Passagem e a explicação do trabalho com a bateia em busca do ouro em pó, onde ao lado também ficam um museu e uma loja de pedras preciosas e outros objetos. É tanta coisa para ver que se tentarmos apreciar com demasiada vagarosidade demandaria outra vida. Isso sem contar todas as belezas naturais que podemos ver do alto das ladeiras, como estamos fazendo agora para nos libertar de todos os nossos vícios e misérias, ele disse.

– Marcos, eu sei que vamos conversar sobre este assunto mais adiante, mas é verdade que Aleijadinho é um gênio da escultura e que chegam a considerá-lo um deus em sua arte? Ele estudou em alguma escola de Belas Artes italiana ou francesa? Ele seria mesmo um deus? Digo isso porque muitos dos grandes pintores e escultores estudaram nestes locais.

– Certamente, muitos dos grandes pintores e escultores estudaram nestes locais. Estes são das categorias dos grãos de azeitonas. O Aleijadinho está muito além desta mera categoria, milhares de anos-luz, um homem raro de encontrar hoje em dia e quase não se ver por aí, é como encontrar uma agulha no palheiro, se é que você me entende. Grande parte do sujeito pós-moderno parece lenha verde: quanto mais o assopra ele só sai fumaça. Se ele é um deus? É bem provável que sim. Por quê? Ele não poderia ser? Só porque ele tem essa cara de esfomeado e de sarampo ressecado e é aleijado dos pés e das mãos?

– Mas o que dizem por aí é que deus tem um outro rosto.

– Sim, e daí? Você parece um papagaio.

– E daí é que ele não poderia ser deus, poderia?

– Dizem também que o homem é a imagem e semelhança de deus, então não importa se ele é um árabe endinheirado ou um farrapo humano ou um deus molambo, maltrapilho e esquálido.

– Sábias palavras! Você tem razão.

– Falando assim você parece um padre, entra num convento e ficar por lá até que a morte os separe?

– Não existe sapiência nenhuma nestas palavras e também não estou com razão alguma; nesta ocasião eu apenas repito como papagaio.

– Agora me diz uma coisa, se a vida lhe reservou ser um homem tão desafortunado, ficou aleijado perdendo os movimentos dos pés e das mãos e também não tinha maiores atributos ou elegância, como ele pôde ser tão generoso com ela, retribuindo-a com obras desta natureza?

– Você precisa entender duas coisas importantes, meu caro amigo: a arte não oferece troca de moedas, barganhas ou favores, como tem ocorrido por aí com bastante frequência, a outra coisa importante é que cada um dá o que tem, meu caro, não tem nada de complicado nisso, é simples de entender, qual é a dificuldade de entender isso?

– De fato, não há.

– Catedrático, você sempre me deixando em maus lençóis. Desse jeito vou acabar indo para o inferno ou no mínimo parar no purgatório. Mas não fique pensando que você vai para o céu. O céu é apenas um lugar para ser apreciado, como estamos fazendo aqui nesta paisagem como forasteiros. Para dizer a verdade, esta conversa de inferno e purgatório é uma brincadeira de muito mau gosto. Discutiremos este assunto mais adiante como ficou combinado, não seja insolente.

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