Poema Visual – Visual Poem. Para a coletânea do livro-experimental “Cartografia”
Arquivo da categoria ‘Poesia’
“Chão Arejado” – Lançamento em breve!
textos: marcos torres
interpretações gráficas: uillian novaes
[hã]-verso
↔
eu
sou aquele
ao seu lado.
↔
veja-me.
ao emitir minha voz profunda não precisa ter medo.
só quero livrar-me dos inimigos, caçadores e canibais.
somos filhos dos mesmos avós.
nossas distâncias são grandes,
porque não gosto do rumor do tráfego nem de suas buzinas enfurecidas.
prefiro saborear os brotos de bambu no silêncio das montanhas do congo.
sou pacato, assim como o meu bando.
só não gosto de perturbações.
será que não vê o mundo já cheio de ruídos?
pra que tanta hostilidade, esta linguagem beligerante, cheia de segregação…
nossos filhos têm brincadeiras iguais.
veja do outro lado o seu antepassado.
21.
travessia.
leia, este papel abandonado. pelo menos uma sílaba antes de atravessar para o outro lado da ponte. diante deste céu ausente que demora tanto tempo para derramar uma lágrima. diante destas águas turvas, com peixes solitários pulando e vencendo a correnteza fugindo dos anzóis e de predadores bípedes. esta ponte muda. ao lado de corpos escondidos sob os tetos carcomidos dos viadutos. e do outro lado um chão de betume, em meio ao asfalto quente e crianças com uma esqualidez agonizante, como os ossos do boi sendo cortados pelo punhal do magarefe, roupas em frangalhos, pés descalços, rostos pálidos, olhos sonolentos, jogadas nas calçadas sugando brasas acesas dentro de uma lata velha, uma humanidade-cumplicidade jamais vista antes debaixo deste céu com olhos cegos, nenhuma outra igual em morte coletiva, em muito ou pouco tempo tudo pode virar cinzas, ou terra para alimentar parasitas, ou, nada…entre olhares impiedosos, com uma indiferença atroz, inquisidores vagando pelas ruas como sombras de fantasmas entre becos escuros e casarões em ruínas com seus olhos antigos olhando de soslaio e observando o rumor do tráfego com um enevoado mar de fuligem. e todos esquecidos por corpos semivivos e trancafiados em subterrâneos com endereços incertos e lugares escusos, impenetráveis, sombrios, inacessíveis… leia, este corpo mudo divido em páginas-silêncio. nem que seja uma sílaba…
estou deitado em alguma ponte do rio capibaribe… recife – pernambuco – brasil
marcos torres
foto e vídeo
chão arejado – lançamento em breve!
textos: marcos torres
interpretações gráficas: uillian novaes
retrato anômalo
para kevin carter
sobrevivo grande parte da vida dentro de uma águia de aço
e minha existência se resume às lentes e aos flashes de uma fotografia.
o meu corpo sangra ao longo das linhas dos mapas.
as geografias que retrato são como estilhaços de vidro.
cada momento é um pedaço de existência esvaindo-se no vento.
tenho um corpo frágil e é impossível sustentar tantas misérias.
a minha mente está em constante estado de convulsão
e não sei até quando vou suportar tudo isso: dores invisíveis
e sangue vertendo como uma espuma de bile, ou cianureto,
que aos poucos vai derramando sobre os solos áridos.
para suportar tantas dores e angústias sou dominado por anfetaminas,
que um dia me levarão para suas órbitas, lá onde tudo é deserto e mudo.
onde um dia eu também vivi.
diante desta fotografia que ora te ofereço,
essas sílabas vivem sem razão para existir,
e sua voz é como um zumbido em meu ouvido vindo de uma terra seca
e rarefeita de pó,
tão inaudível quanto os deuses nas catedrais subterrâneas medievais ou aqueles presos em sarcófagos e soterrados nas profundezas do vale dos reis ficando lá para sempre como demônios do meio dia.
eu poderia mudar o foco deste gesto, pois os morcegos vivem gritando em meu ouvido todos os dias, como vampiros chupando o sangue de um esquálido sem território.
vivo no limite entre vida e morte. a condição humana me apavora.
o mundo me asfixia de uma forma ou de outra. morrerei por vontade própria.
com a mesma existência embora com forças contrárias ao homem lá de cima, sentado numa poltrona vendo quieto tudo acontecer, nessas terras inférteis de pura desolação dentro de um planeta estéril sob este céu que ora me apedreja,
ora trata-me com falsa benevolência, afetos e indulgências…
somos do the bang-bang club. faço parte de vozes contra o apartheid. nossos corpos lutam contra os noventa por cento de pretos sendo evacuados das ruas às seis da tarde. enquanto isso os outros dez por cento tingidos de neve vivem livremente como corvos.
vejo agora uma criança sendo mirada por um instinto abutre. queria que estivesse brincando no parque com seus amigos. e eu eternizando sua existência pela lente de uma fotografia. seria belo se fosse uma fábula.
ninguém escapa aos estilhaços de balas e pólvoras e suas cápsulas espalhadas em ruas lamacentas e guetos de ayod. nem o ingênuo e o igualmente faminto abutre escapa. a imagem da tragédia desnuda-se de palavras. em ayod hamlet no sudão é puro pesadelo, é como espectros nos assombrando todos os dias nas esquinas da vida pela lente de uma ampulheta. a desnutrição não passa de uma metáfora para uma realidade muito mais cruel. a morte é um espelho em refração permanente como os estilhaços de um meteoro.
esta saudade me corrói por dentro.
ken!, em breve estaremos juntos, nos encontraremos antes mesmo do entardecer. em breve seremos esquecidos como poeiras lançadas ao vento. fique tranquilo. as pessoas esquecem tudo muito rapidamente e até mesmo as coisas mais escabrosas. dorme sossegado.
queria ser de outra espécie. não posso. tenho forças limitadas.
caminho sobre terrenos tortuosos ao longo de grandes depressões
com fazendas cercadas de arames furando o meu corpo.
quero ir embora meus amigos ken, greg e joão, eu quero, lá fora o mundo é abjeto.
queria salvar uma vida a cada novo voo. mas não consigo por ter forças limitadas.
queria ser um pássaro para voar por entre as planícies e levar alimento para as terras esquecidas e famintas. o mundo à minha volta não faz mais nenhum sentido.
sinto minha carne sendo comida por sanguinários canibais. são muitos e estou sozinho nesta estrada escura e sombria.
estou sendo dominado por anfetaminas. a minha vida está fazendo pouco sentido nessa terra de loucos e dementes. vivo constantemente com culpas alheias. um de meus melhores amigos morreu antes mesmo de eu poder dar-lhe um último abraço de despedida.
estou deprimido, sem telefone, sem dinheiro para o aluguel, sem dinheiro para ajudar as crianças, sem dinheiro para as dívidas… dinheiro! sou perseguido pela viva lembrança de assassinatos, cadáveres, raiva e dor; pelas crianças feridas ou famintas; pelos homens malucos com dedo no gatilho, muitas vezes policiais, carrascos… se eu tiver sorte, vou me juntar ao ken.
naquele dia estava num terreno que se resumia a corpos esquálidos em meio a detritos e lama. não havia espaço para aviões e burgueses. não estava num espaço para principiantes. já há muito tempo o meu corpo vive no limite. barreiras são fincadas de forma intransponível. nunca fui personagem de um livro de ficção. embora a realidade não passe de metáforas e fantasias monstruosas. todos os dias o meu coração sangra, por mais que eu não queira. não sou adepto do sadismo perverso. aprecio o prazer e a vida em liberdade. se retrato o horror é porque estou inquieto e gostaria de ver outra imagem de beleza e paisagem, bela e feliz, com o canto dos pássaros e o balé das águas, e sentir o cheiro das folhas secas caindo no chão da floresta nas diferentes geografias dos mapas.
estou aqui contemplando esta cena. ninguém escuta o meu grito. fico aqui falando para ouvidos moucos. como não tenho com quem conversar falo em monólogo. o meu instinto é incontrolável. fiquei ali cabisbaixo vendo aquela imagem, um corpo esquálido arrastando-se no meio dos detritos, e depois perguntei-me: por que este mundo me deixa nesta situação, neste abismo?
não sou vulgar e meus instintos não se resumem a hábitos necrófagos. venho aqui para restaurar um novo mundo com outros aromas e te mostrar uma nova imagem sob outra perspectiva de minha vida e existência. não sou apenas comedor de carne nem vivo a vida inteira sobrevoando cadáveres. tenho vida longeva. posso ser um operário para outros trabalhos braçais durante um bom tempo e depois viajo para outras planícies e terras desoladas levando os mesmos propósitos. sou civilizado. sou filho dos hieróglifos e posso ser tua mãe para cuidar-te assim como faço com os meus próprios filhos que vivem além das montanhas para não serem comidos por predadores e canibais rastejantes.
como fêmea fui fecundada pelo vento durante o voo. o início de minha existência é pura poesia.
protejo os sarcófagos no corpo de ísis com minhas asas.
também sou totalmente transformado em ísis para sobrevoar e proteger o corpo de osíris.
o pequeno abutre estava ali cumprindo sua missão sobre esta terra de suicidas. por puro instinto vive limpando toda nossa grande podridão para deixar este chão arejado.
Livro e Exposição Chão Arejado
Publicado: setembro 18, 2016 em Eventos, Literatura e Outras Artes, PoesiaPUBLICAÇÃO, LANÇAMENTO E EXPOSIÇÃO EM BREVE!
Este livro e exposição são dedicados ao fotógrafo sul-africano Kevin Carter e a Kong Nyong, a criança sudanesa que se arrastava pelo chão sob o olhar atento e instintivo de um abutre, durante a gerra civil sudanesa que dizimou grande parte daquela população nos idos de 1980 e 1990, e também a todos os animais que vivem na natureza lutando pela sobrevivência numa terra cada vez mais selvagem.
retrato anômalo
para kevin carter
sobrevivo grande parte da vida dentro de uma águia de aço
e minha existência se resume às lentes e aos flashes de uma fotografia.
o meu corpo sangra ao longo das linhas dos mapas.
as geografias que retrato são como estilhaços de vidro.
cada momento é um pedaço de existência esvaindo-se no vento.
tenho um corpo frágil e é impossível sustentar tantas misérias.
a minha mente está em constante estado de convulsão
e não sei até quando vou suportar tudo isso: dores invisíveis
e sangue vertendo como uma espuma de bile, ou cianureto,
que aos poucos vai derramando sobre os solos áridos.
para suportar tantas dores e angústias sou dominado por anfetaminas,
que um dia me levarão para suas órbitas, lá onde tudo é deserto e mudo.
onde um dia eu também vivi.
diante desta fotografia que ora te ofereço,
essas sílabas vivem sem razão para existir,
e sua voz é como um zumbido em meu ouvido vindo de uma terra seca
e rarefeita de pó,
tão inaudível quanto os deuses nas catedrais subterrâneas medievais ou aqueles presos em sarcófagos e soterrados nas profundezas do vale dos reis ficando lá para sempre como demônios do meio dia.
eu poderia mudar o foco deste gesto, pois os morcegos vivem gritando em meu ouvido todos os dias, como vampiros chupando o sangue de um esquálido sem território.
vivo no limite entre vida e morte. a condição humana me apavora.
o mundo me asfixia de uma forma ou de outra. morrerei por vontade própria.
com a mesma existência embora com forças contrárias ao homem lá de cima, sentado numa poltrona vendo quieto tudo acontecer, nessas terras inférteis de pura desolação dentro de um planeta estéril sob este céu que ora me apedreja,
ora trata-me com falsa benevolência, afetos e indulgências…
somos do the bang-bang club. faço parte de vozes contra o apartheid. nossos corpos lutam contra os noventa por cento de pretos sendo evacuados das ruas às seis da tarde. enquanto isso os outros dez por cento tingidos de neve vivem livremente como corvos.
vejo agora uma criança sendo mirada por um instinto abutre. queria que estivesse brincando no parque com seus amigos. e eu eternizando sua existência pela lente de uma fotografia. seria belo se fosse uma fábula.
ninguém escapa aos estilhaços de balas e pólvoras e suas cápsulas espalhadas em ruas lamacentas e guetos de ayod. nem o ingênuo e o igualmente faminto abutre escapa. a imagem da tragédia desnuda-se de palavras. em ayod hamlet no sudão é puro pesadelo, é como espectros nos assombrando todos os dias nas esquinas da vida pela lente de uma ampulheta. a desnutrição não passa de uma metáfora para uma realidade muito mais cruel. a morte é um espelho em refração permanente como os estilhaços de um meteoro.
esta saudade me corroe por dentro.
ken!, em breve estaremos juntos, nos encontraremos antes mesmo do entardecer. em breve seremos esquecidos como poeiras lançadas ao vento. fique tranquilo. as pessoas esquecem tudo muito rapidamente e até mesmo as coisas mais escabrosas. dorme sossegado.
queria ser de outra espécie. não posso. tenho forças limitadas.
caminho sobre terrenos tortuosos ao longo de grandes depressões
com fazendas cercadas de arames furando o meu corpo.
quero ir embora meus amigos ken, greg e joão, eu quero, lá fora o mundo é abjeto.
queria salvar uma vida a cada novo voo. mas não consigo por ter forças limitadas.
queria ser um pássaro para voar por entre as planícies e levar alimento para as terras esquecidas e famintas. o mundo à minha volta não faz mais nenhum sentido.
sinto minha carne sendo comida por sanguinários canibais. são muitos e estou sozinho nesta estrada escura e sombria.
estou sendo dominado por anfetaminas. a minha vida está fazendo pouco sentido nessa terra de loucos e dementes. vivo constantemente com culpas alheias. um de meus melhores amigos morreu antes mesmo de eu poder dar-lhe um último abraço de despedida.
estou deprimido, sem telefone, sem dinheiro para o aluguel, sem dinheiro para ajudar as crianças, sem dinheiro para as dívidas… dinheiro! sou perseguido pela viva lembrança de assassinatos, cadáveres, raiva e dor; pelas crianças feridas ou famintas; pelos homens malucos com dedo no gatilho, muitas vezes policiais, carrascos… se eu tiver sorte, vou me juntar ao ken.
naquele dia estava num terreno que se resumia a corpos esquálidos em meio a detritos e lama. não havia espaço para aviões e burgueses. não estava num espaço para principiantes. já há muito tempo o meu corpo vive no limite. barreiras são fincadas de forma instransponível. nunca fui personagem de um livro de ficção. embora a realidade não passe de metáforas e fantasias monstruosas. todos os dias o meu coração sangra, por mais que eu não queira. não sou adepto do sadismo perverso. aprecio o prazer e a vida em liberdade. se retrato o horror é porque estou inquieto e gostaria de ver outra imagem de beleza e paisagem, bela e feliz, com o canto dos pássaros e o balé das águas, e sentir o cheiro das folhas secas caindo no chão da floresta nas diferentes geografias dos mapas.
estou aqui contemplando esta cena. ninguém escuta o meu grito. fico aqui falando para ouvidos moucos. como não tenho com quem conversar falo em monólogo. o meu instinto é incontrolável. fiquei ali cabisbaixo vendo aquela imagem, um corpo esquálido arrastando-se no meio dos detritos, e depois perguntei-me: por que este mundo me deixa nesta situação, neste abismo?
não sou vulgar e meus instintos não se resumem a hábitos necrófagos. venho aqui para restaurar um novo mundo com outros aromas e te mostrar uma nova imagem sob outra perspectiva de minha vida e existência. não sou apenas comedor de carne nem vivo a vida inteira sobrevoando cadáveres. tenho vida longeva. posso ser um operário para outros trabalhos braçais durante um bom tempo e depois viajo para outras planícies e terras desoladas levando os mesmos propósitos. sou civilizado. sou filho dos hieróglifos e posso ser tua mãe para cuidar-te assim como faço com os meus próprios filhos que vivem além das montanhas para não serem comidos por predadores e canibais rastejantes.
como fêmea fui fecundada pelo vento durante o voo. o início de minha existência é pura poesia.
protejo os sarcófagos no corpo de ísis com minhas asas.
também sou totalmente transformado em ísis para sobrevoar e proteger o corpo de osíris.
o pequeno abutre estava ali cumprindo sua missão sobre esta terra de suicidas. por puro instinto vive limpando toda nossa grande podridão para deixar este chão arejado.
marcos torres
ilustração: uillian novaes
…quando vão [me] acordar? quem um dia ouvirá esse meu grito abafado pelo rumor do tráfego?…
…quando vamos poder seguir?…
20.
…por que ainda não acordamos?…
– – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – –
– – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – –
– – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – –
…será que o [sinal] vermelho ainda está fechado?…
… esperando sentado sem pressa um trem que nunca chega…